São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1994
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Kazan apaga limite entre ator e personagem

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Que mistério tem Tennesse Williams? Suas peças são feitas de um doce veneno, de uma fascinação que nos coloca no extremo perigo da perversão. Lembro da onda de sensualidade que tive em Nova Orleans quando vi realmente um bonde chamado "Desire" (ou era um ônibus?). A colonização francesa deve ter nomeado um bairro com o nome de "Desirée", a amante de Napoleão, que os americanos, claro, chamam de "desaire" (desejo).
Tennesse viu este bonde nos levando para o louco mundo de desamparo erótico. Ao contrário do clássico O'Neill (que é maior que ele), Tennesse se banhava bichamente no doce rio da loucura e talvez tenha feito mais bem aos americanos que seu genial colega.
Elia Kazan é outro. Acusado de delação durante o período do macarthismo, seu imenso talento vem eivado de uma forte cor de crime e traição, algo meio "genetiano". Somados os dois perversos, temos "Um Bonde Chamado Desejo" (lançado em vídeo como "Uma Rua Chamada Pecado"), delírio máximo, desmaio, desfalecimento de amor, um desses momentos em que o cinema vira mito.
Marlon Brando e Vivien Leigh em Nova Orleans mais Karl Malden, mais jazz, mais Bourbon Street, mais a música de Alex North criam uma dessas conjunções astrais que raramente rolam no cinema americano. Este filme de 1951 só mostra comportamento, só cria clima, nada de ação para atrapalhar, só o mágico mundo úmido meio tropical da Louisiana envolvendo a dama decadente que vai morar com a irmã e o violento marido Marlon num cortiço.
A oposição entre a América idealizada do sul aristocrático e a fome dos imigrantes polacos se chocam na construção de um dos mais lindos "cult movies" do cinema.
Talvez a importância maior de Kazan seja a nova visão de ator que ele criou junto com Lee Strasberg no Actor's Studio, misturando Freud com "ghetto". Em filmes como esse (ou em "Vidas Amargas", com James Dean), o mistério é o personagem principal.
Como nos filmes noir, Kazan sabia que, em cinema, o ator é o personagem. Ele apagou a fina linha que havia entre os dois, o limite entre a ficção e a pessoa. Assim, Stanley Kowalski é Marlon Branco, como Blanche Dubois é Vivien Leigh. Kazan se aproveitava da neurose dos atores e transformava isto em arte.
Ninguém entrava em personagem nenhum; as criações saíam de dentro dos atores como almas se esvaindo. Kazan fetichizava as pessoas como coisas. Assim, Marlon foi o inventor da t-shirt e do suor em cena, com sua dupla variação entre erotismo e violência súbita. Assim, a tristeza de James Dean e suas jaquetas e seu cabelo indomável.
Este filme de Kazan tem um pouco do clima expressionista e romântico dos filmes noir. Os filmes policiais eram uma metáfora da inexplicabilidade da vida americana, do mistério do cotidiano para além do bem e o do mal.
Os filmes de Kazan e principalmente este são um elogio da loucura, da neurose e do desamparo nas cidades modernas. Nestes poucos momentos, Hollywood sem querer deixou entrever a inquietude que atravessa a vida americana.
Bons tempos em que os cineastas filmavam a vida de lado como que vista por uma porta entreaberta. O tema do duplo agente em Kazan não estava na vida real dele, estava em seu estilo. Kazan nos delatava.

Vídeo: Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire)
Direção: Elia Kazan
Elenco: Marlon Brando, Vivien Leigh, Karl Malden, Kim Hunter
Distribuição: Warner (tel. 011/820-6777)

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