São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1994
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A negociação das diferenças

GILBERTO VELHO

Considero um privilégio poder escolher entre Fernando Henrique e Lula nesta eleição presidencial. Não pertenço a nenhum partido. Nos últimos anos votei em candidatos do PSDB, do PT, do PSB e do PMDB. Desejei uma aliança que viabilizasse uma chapa capaz de congregar a esquerda democrática com o apoio de outros partidos. Isto não foi possível devido a variáveis que confirmam a tradicional dificuldade de união das forças progressistas.
Assim, tendo lamentado a impossibilidade de unir as esquerdas, constato a situação inédita de poder optar entre dois políticos democratas e progressistas, depois de uma longa ditadura militar e de dois governos civis arbitrários e manipuladores.
Não vou encobrir a minha identificação pessoal com um grande cientista social, brilhante político, com quem tenho laços de amizade. Mas, também, é verdadeira minha admiração por um extraordinário líder da classe trabalhadora cuja trajetória é objeto de reconhecimento por todos os verdadeiros democratas brasileiros.
Acredito, no entanto, que existe uma fatalidade sociológica que pesa sob a candidatura Lula. Sua força advém de seu profundo e legítimo vínculo com a classe trabalhadora. Isto não implica nenhuma limitação de ordem individual, mas estabelece um impasse político. Quando se trata de disputar a chefia da nação, cria-se uma contradição entre os papéis de grande líder de classe e de aspirante à Presidência de todos os grupos e segmentos sociais.
Quando Lula tenta transcender sua liderança de origem, lembra o gigante Anteu que, afastado do contato com Gea, a terra, enfraquecia-se de modo fatal, sendo assim derrotado por Hércules. Ou seja, a grande força de Lula provém, sobretudo, de sua ligação com a classe trabalhadora, seus interesses específicos e particulares que não são iguais aos da nação como um todo. Há que negociar e nesta negociação Lula se enfraquece, dividido entre grupos que desejam alianças e aqueles que não as admitem em nome da integridade da representação dos trabalhadores.
Enquanto isso, Fernando Henrique, na sua condição de político e intelectual, livre desse tipo de vínculo, tem maior trânsito entre os diferentes grupos políticos, podendo negociar e fazer alianças sem se enfraquecer na base. Isto não significa que eu goste e valorize igualmente todos os seus aliados, mas vejo a possibilidade efetiva de outras alianças serem feitas, uma vez eleito, que fortalecem mais ainda a dimensão social-democrata de seu programa.
Não creio que seja possível governar o Brasil, consolidando a democracia, sem negociar com todos os grupos. É óbvio que acredito que existem questões políticas e éticas que são inegociáveis quando se combate a corrupção e se luta pela justiça social. É aí que aposto na vocação de estadista de Fernando Henrique.
Suas características pessoais e intelectuais compõem um perfil político que o destaca de um setor ou grupo particular. O seu talento, a sua identidade universalista, a sua origem na "intelligentsia", a sua visão de nação dão-lhe condições excepcionais para exercer o papel de grande articulador e de líder nacional.
Vale frisar que na atual composição interna e na distribuição de poder dentro do PT identifico dificuldades para qualquer política de aliança. Já Fernando Henrique, por suas qualidades de articulador associadas ao Plano Real e ao controle da inflação, encarna a possibilidade de implementação de um projeto nacional, resultado de acordos entre os diferentes atores sociais.
O plano não basta e necessita de desdobramentos diversos para que o país saia da grave crise social que vem atravessando. Para isso, urge estabelecer um espaço de diálogo, não para dissolver as diferenças, mas para negociá-las.
Sustento que as forças conservadoras que apóiam a candidatura de Fernando Henrique estão sendo obrigadas a isto. Não conseguiram extrair de seus quadros, liderança que apresentasse chances de ganhar a eleição. Não há dúvida que o temor a Lula e ao PT é determinante de mudança de estilo e de atitude da direita tradicional. Ela está sendo levada a reformulações. Precisou fazer alianças, mas, ao fazê-las, transforma-se caminhando para o centro.
Não é possível governar o Brasil democraticamente ignorando os grupos conservadores. Por outro lado, para que um projeto social-democrata possa vir a ser efetivamente implementado, será imprescindível a participação do PT, através de seus melhores quadros e de lideranças como a de Lula, insubstituível no seu papel.
Voto em Fernando Henrique convicto de que a sua vitória não só consolidará a democracia como deverá equilibrar a prioridade da estabilidade econômica com a retomada do desenvolvimento e com a luta pela justiça social. Sobretudo, representa a possibilidade da sociedade brasileira encontrar-se, através da discussão e do confronto de seus interesses particulares e diferenças, em um projeto mais amplo que seja benéfico para todos, à medida que se sustenta em valores efetivamente democráticos.

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