São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1994
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A cidadania do povo

ANTONIO CANDIDO

Um traço positivo desta eleição é o destaque que os candidatos à Presidência têm dado ao fato de terem programas. Isso parece indicar que não bastam mais as simples palavras de ordem ou promessas sem garantia convincente. O eleitorado quer, ao que parece, saber qual é a intenção dos postulantes em face dos graves problemas da sociedade. Por isso todos eles põem em primeiro plano "o social" em termos que algumas décadas atrás seriam considerados subversivos, mas agora se tornaram "normais", o que poderia ser um progresso.
Mas aí começam as dúvidas. Os discursos dos candidatos, nesse setor, exprimem disposição real ou são apenas recursos de propaganda? A resposta a uma pergunta como esta pode ser decisiva para orientar o voto. Quem estiver convencido de que é preciso efetuar alterações profundas nas instituições e nos métodos de governo, assim como no comportamento das classes e dos grupos, a fim de enfrentar os problemas, deverá escolher candidatos para os quais a sua solução seja um imperativo, não um expediente de campanha. Nestes termos, Luiz Inácio Lula da Silva me parece o mais adequado e por isso votarei nele.
Os motivos que tenho são muitos, mas poderia destacar um, que é dos mais importantes e está expresso do seguinte modo num documento do PT: "O Brasil se encontra diante de um momento decisivo de sua história: a oportunidade de promover a maioria social à condição de maioria política".
Sob esse ponto de vista, a nossa história desde a Independência tem sido a da incapacidade de realizar esta tarefa. Inclusive porque, aqui, as reformas preconizadas pelos progressistas ou são abortadas, ou (como já se disse há muito tempo) são realizadas pelos conservadores, que se antecipam e, deste modo, dão um jeito de mudar o mínimo para continuar mandando o máximo.
Basta lembrar qual foi o desfecho da "questão servil", quando a Abolição mudou o estatuto jurídico do escravo sem mudar essencialmente o seu estatuto social e econômico, de tal maneira que os seus descendentes se vêem ainda hoje postos à margem. Lembre-se, ainda, a legislação social dos anos de 1930, quando a pressão das circunstâncias a tornou imperativa, mas os conservadores criaram formas de tutela que embotaram a força eventual das reivindicações.
A respeito disso convém citar o que diz o professor Francisco Weffort no livrinho coletivo "13 Razões para Votar em Lula": "Se a história do Brasil, desde a revolução de 1930, é a de emergência do povo, chegamos finalmente à época da sua integração à nação e à democracia. É este o grande significado da campanha de Lula em 1994", pois "significa, primordialmente, a promoção dos trabalhadores à cidadania. No mesmo sentido significa desprivatizar o Estado, eliminar os privilégios que o tornam presa de caça dos poderosos".
Essa vasta incorporação do povo à cidadania não se fará em um período de governo, nem será obra de um homem. É tarefa para uma geração politicamente bem orientada, cujo resultado poderá superar a divisão entre Brasil arcaico e Brasil moderno e (ao ampliar em larga escala as oportunidades) reduzir o abismo entre os níveis econômicos e sociais.
Lembremos que depois de 1930 foi importante o Rio Grande do Sul ter entrado firme nos controles do poder federal, até então reduzidos praticamente a São Paulo e Minas Gerais. Graças a isso, houve diversificação horizontal no mando das oligarquias estaduais, numa espécie de arejamento que facilitou o processo lembrado por Weffort, de advento do povo (mesmo sob tutela) ao cenário da vida política, o que se tornara inevitável com a nova fase de industrialização e urbanização.
Agora, trata-se de um arejamento vertical, incorporando as classes tuteladas, que já começaram a tornar imperiosa a sua promoção, ao lutarem com êxito pela participação efetiva nas esferas de decisão. Isto é um fato de incalculável importância para o amadurecimento social e econômico do país, não porque vá gerar o domínio das classes emergentes, mas porque diversificará a participação das classes no mando, graças à aquisição da cidadania plena por parte das menos favorecidas, com todo o enriquecimento humano que isso pode trazer.
Até agora, a cidadania plena tem sido a bem dizer limitada a nós outros, gente de classe média e de classe dominante, isto é, gente que, mesmo quando esclarecida, tende pela própria natureza a querer melhorar tutelando. Mas agora trata-se de incorporar forças novas, a fim de partilhar com elas a responsabilidade, abrindo a equivalência de oportunidades que deverá reger a estratificação da sociedade futura.
Para assegurar a boa marcha desse processo, ninguém mais adequado que Lula. Ele não é demagogo, nem iluminado, nem oportunista e muito menos um ambicioso de poder. É uma espécie de mandatário, ou seja, alguém consciente de representar forças e grupos que confiam nele e aos quais serve, não guia, porque não se desligou das camadas oprimidas de onde proveio e de cuja participação efetiva na vida política depende a democracia brasileira.

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