São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Índice

Morte celular dá o tom do verão

CLÁUDIO CSILLAG
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

O bronzeado e a pele descascada são muito mais do que o resultado da luz solar.
Duas descobertas científicas, publicadas com apenas três semanas de diferença entre si, mostram que eles são resultado da tentativa desesperada do organismo em eliminar o estrago feito pelo Sol.
Um dos artigos indica que a pele morta, que descasca após as queimaduras do Sol, não é composta unicamente por células destruídas pelos raios ultravioleta.
Boa parte delas, na verdade, realizou um gesto altruístico: sabendo que haviam sido perigosamente afetadas pela luz solar, elas literalmente se suicidaram, para evitar que o câncer de pele se instalasse nelas (e, em seguida, se espalhasse pelo corpo).
O outro artigo mostra que o bronzeado não é estimulado unicamente pelo Sol.
Embora os raios ultravioleta provoquem a formação do pigmento escuro responsável pelo bronzeamento –a melanina–, o grande impulso para que o pigmento seja produzido vem de uma mecanismo de defesa da célula –contra as mutações genéticas induzidas pela radiação solar.
Quanto mais mutações forem eliminadas por esse mecanismo de defesa, mais melanina será produzida, e mais escura ficará a célula.
Esse estudo mostra que o bronzeamento nunca é saudável, mesmo quando resultante de uma exposição controlada ao Sol, com uso de filtros protetores.
A cor escurecida é sempre resultado de uma reação –esta sim saudável– do organismo contra a violência dos raios solares.
As descobertas científicas trazem um lado alentador, entretanto, para quem gosta de se bronzear.
Como sabemos como a defesa da célula contra as mutações acabam levando à produção de melanina, estamos trabalhando para conseguir um produto que possa causar o mesmo efeito sem a exposição aos raios ultravioleta, disse à Folha Barbara Gilchrest, que publicou sua pesquisa na edição de 1º de dezembro da Nature.
Os resultados da pesquisadora Annemarie Ziegler, atualmente no Hospital Universitário de Zurique, na Suíça, são menos animadores.
Ziegler, que também publicou seus resultados na revista Nature (na edição de 22/29 de dezembro), não prevê nenhum produto para os aficcionados do Sol. Pelo contrário, ela revela um novo mecanismo pelo qual a luz solar leva ao câncer.
Agente duplo
Os raios ultravioleta causam câncer de duas maneiras. A primeira, já conhecida e muito eficaz, ocorre a partir das mutações que sofre o DNA, o ácido que contém a informação genética.
Em células normais, a atividade do DNA é controlada. Quando uma célula precisa de uma proteína para catalisar uma reação interna, por exemplo, um pedaço do DNA é lido pela maquinaria celular e uma enzima é produzida.
Quando uma célula se divide, outros trechos do DNA são ativados, o DNA se duplica e cada nova célula recebe metade dos genes. Quando termina a divisão celular, os trechos do DNA são desativados e tudo nele volta ao que era antes.
O câncer de pele, como qualquer outro câncer, ocorre quando um defeito no DNA faz a célula perder a capacidade de brecar a divisão.
Um único defeito em uma única célula pode ser suficiente (embora um defeito não seja certeza de que o câncer vá se desenvolver, pois há outros fatores atuantes).
Um célula sem a capacidade de controlar suas divisões se transforma em duas, depois quatro, oito e assim sucessivamente.
O grupo dessas células em divisão constitui um tumor maligno, ou câncer (a referência ao signo astrológico se deve à forma invasiva que a doença assume: ela se espalha pelo corpo como as pernas de um caranguejo).
A radiação ultravioleta costuma danificar através de uma mutação justamente um gene que age como freio nas divisões celulares.
Sem esse gene, chamado p53, as células se tornam cancerosas e se dividem descontroladamente. Por exercer essa função, o p53 é classificado como um gene supressor de tumores.
Essa origem do câncer de pele já foi bem estudada. Agora, a equipe de Annemarie Ziegler, que na época das investigações trabalhava na Universidade Yale, em Connecticut (Estados Unidos), revelou uma outra ação da luz solar.
As queimaduras do Sol podem selecionar a expansão (...) de células mutantes, escreveu a cientista em seu artigo.
Os resultados de Ziegler mostram que existe uma outra função para o gene p53.
Além de preservar a função do DNA da célula, mantendo-o sob controle, o gene também preserva a integridade do tecido em que a célula se encontra.
Os raios ultravioleta danificam as células em vários pontos, não só no gene p53.
Nesses casos, as células também podem se tornar cancerosa (pois o p53 não é o único freio das divisões celulares).
Para impedir que o câncer se instale nessas células, o p53 intacto age com rigor: ordena a autodestruição celular (o que implica na destruição do próprio gene, dentro de cada célula).
Esse processo de suicídio celular, chamado de apoptose, é muito comum.
Faz parte dos mecanismos de proteção do organismo, mas em algumas doenças, como a Aids, ocorre indevidamente, levando células sadias à morte.
Como são muitas as células que recebem a radiação ultravioleta, muitas são afetadas e consequentemente condenadas à morte por seus próprios genes. Esse conjunto de células mortas descasca, e o risco de câncer é eliminado.
O problema é quando o próprio p53 é danificado. Ziegler observou em suas experiências com camundongos que o gene p53 mutante fica com a capacidade de ordenar o suicídio celular reduzida.
Isso significa que várias células danificadas –com mutações capazes de levar ao câncer no p53 e em outros genes– acabam escapando da condenação ao suicídio.
Como explicou Ziegler, essas células com p53 mutante ganham uma vantagem competitiva: enquanto outras células vão sendo obrigadas a se matar, essas vão se acumulando e tomando o lugar das outras.
A chance de surgir um câncer, com o acúmulo de células mutantes, aumenta.
Molécula do ano
O organismo tenta se defender como pode das mutações provocadas pelos raios solares.
Ao mesmo tempo que inúmeras células se sacrificam para preservar a pele do câncer, há outros mecanismos em ação.
Um deles é a remoção e destruição dos trechos de DNA danificados. O próprio gene p53, se danificado, poderia ser reparado.
Existe um tipo de proteína, chamada enzima de reparo de DNA, que é fundamental nesse processo.
Sua atuação é tão importante que a Associação Americana para o Progresso da Ciência –órgão que publica a revista Science, a rival da britânica Nature– a elegeu molécula do ano, há dez dias.
A equipe de Barbara Gilchrest investigou uma variedade dessa enzima, a T4N5.
Como todas as enzimas, ela acelera reações químicas –especificamente uma ligada à retirada de trechos de DNA danificados pela radiação ultravioleta.
Gilchrest descobriu, em animais de laboratório, que a T4N5 provoca um efeito colateral: aumenta a produção de melanina.
A cientista não sabe explicar como isso ocorre, mas suspeita que o acúmulo de fragmentos retirados do DNA dentro da célula seja um sinal para o início da produção do pigmento.
Após exposição à luz solar, as células da pele ativam essa enzima para consertar o DNA.
Como são muitos os trechos de DNA danificados, há muita atividade enzimática e um aumento razoável na produção de melanina.
A tonalidade do bronzeado pode ser, portanto, um indicador do grau de eficiência do mecanismo anticâncer da célula.
Esse efeito colateral da enzima acaba sendo útil, pois a melanina é um filtro eficaz contra os raios ultravioleta.
Com a camada externa da pele –a epiderme– repleta de melanina, as camadas mais internas ficam protegidas da ação nociva do Sol.
Pomada bronzeadora
Os cientistas da equipe de Gilchrest foram adiante. Rasparam o pêlo de cobaias e aplicaram uma pomadinha composta por trechos de DNA semelhantes aos danificados pela luz ultravioleta.
Eles realizaram a aplicação duas vezes ao dia durante apenas cinco dias. Dez dias depois, as áreas que receberam o tratamento com a pomada estava mais escura. A cor persistiu por mais de 60 dias, disse Gilchrest.
Exames ao microscópio mostraram que as células da epiderme dos animais estavam tomadas de melanina, de forma idêntica à observada na epiderme exposta a raios ultravioleta.
As pessoas poderiam usá-la durante uma semana, ficar bronzeadas antes do verão e poder ir à praia com um excelente protetor solar –a melanina– dentro do próprio corpo.

Texto Anterior: Por que a água não pega fogo?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.