São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
Próximo Texto | Índice

A âncora e o social

Novo comandante do barco Brasil, Fernando Henrique Cardoso será, ao menos nos primeiros tempos de sua gestão, um presidente em busca de uma âncora mais sólida na qual apoiar a estabilização da economia, por ele mesmo iniciada como ministro da Fazenda.
O novo titular da Pasta, Pedro Malan, já avisou, em entrevista concedida a esta Folha: "Uma política de estabilização não pode estar baseada só em câmbio e em política monetária austera".
Ora, é exatamente na sobrevalorização do real em relação ao dólar e em uma austeridade monetária, ainda que apenas relativa, que se ancora hoje o Plano Real.
A âncora que falta e atrás da qual irá FHC, a partir do momento em que se instalar no Planalto, é exatamente a mais difícil de se obter. Chama-se âncora fiscal e significa um equilíbrio mais estrutural das contas públicas.
Para que se obtenha um ajuste fiscal efetivo, é preciso reformular algumas passagens da Constituição brasileira, ponto em que estão de acordo quase todos os economistas, de direita ou de esquerda, do governo ou de fora dele.
O próprio presidente, enquanto candidato, deixou claro que suas primeiras prioridades são as reformas constitucionais voltadas para o saneamento das contas públicas.
Mais exatamente, trata-se das reformas tributária, da Previdência Social e do chamado pacto federativo, ou seja, a distribuição de funções e receitas entre a União, os Estados e os municípios.
Conjunto tão amplo de reformas, como é óbvio, mexerá com inúmeros interesses estabelecidos e hábitos arraigados. Logo, não será nada fácil aprová-las, ainda mais porque a Constituição exige um quórum elevado (3/5 de cada Casa do Congresso, em duas votações) para a aprovação de emendas.
Até certo ponto, o ministério de FHC reflete essas prioridades. Em busca de uma maioria no Congresso, negociou politicamente não apenas com os partidos que compuseram a coligação que o elegeu (PFL e PTB), mas também com um teórico adversário, o PMDB, a legenda de maior bancada em ambas as Casas do Congresso.
O resultado dessa composição só se verá mais adiante e tende a ser decisivo para que o novo presidente satisfaça ou não a expectativa positiva que cerca a sua posse. De acordo com levantamento do Datafolha, são 71% os brasileiros que esperam de Fernando Henrique um governo "ótimo/bom".
É uma porcentagem superior à que deu a vitória a FHC, um sinal positivo. Mas, em contrapartida, é praticamente a mesma porcentagem dos otimistas em relação a Fernando Collor, às vésperas da posse deste, em 1990.
Vê-se, portanto, que a confiança do público nada assegura de antemão ao governante.
Vai ser necessária ação, muita ação –e muito rápida. E de pouco adiantará resolver o desafio da âncora e, por extensão, de uma estabilização mais sólida e duradoura, se ela não servir de plataforma para se enfrentar o desafio social.
A miséria e a desigualdade social no Brasil, é sempre bom lembrar, não foram criadas pela superinflação, ainda que esta tenha agravado profundamente o quadro. Logo, a estabilização é condição necessária mas não suficiente para se iniciar o processo de reversão do escândalo social que é o Brasil.
No caso de Fernando Henrique Cardoso, o compromisso com a questão social não é apenas do candidato, mas uma história de vida, como sociólogo primeiro e como parlamentar depois.
O que se vai ver agora é se as novas alianças que o intelectual costurou para a campanha funcionarão ou não, no governo, como anestésicos para a sua preocupação com o social.
Se funcionarem, o Brasil corre o risco de repetir, 30 anos depois, uma emblemática frase do então presidente, o general Garrastazu Médici: "O país vai bem, mas o povo vai mal".
Seria um triste epitáfio para uma carreira até aqui vitoriosa.

Próximo Texto: Os tóxicos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.