São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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O cão atropelado

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Já acreditei em Deus mas sempre me recusei a acreditar em Papai Noel. Nada contra o bom velhinho. Apenas suspeitava de sua bondade, achava cretina a sua disponibilidade. Em compensação, acreditei em coisa mais fantástica do que Deus e Papai Noel.
Não lembro quem me contou, talvez um tio, um vizinho, talvez a lembrança confusa de primeiras leituras. O fato é que, no dia 31 de dezembro, eu me esforçava para ficar acordado e ver, no céu em cima de minha cabeça, a mudança do ano. Garantiram-me que, à meia-noite em ponto, surgiria um velho muito magro e descarnado, caindo aos pedaços, velho de apenas 365 dias mas alquebrado como se carregasse nas costas 365 séculos. Esse velho traria uma faixa, como as misses e os presidentes da República que se empossam. Na faixa, o número do ano que chegava ao fim.
No mesmo instante, vindo de outro canto, eu veria uma criança, alguma coisa parecida com o menino Jesus que colocam nos presépios. Além da fralda, o guri também traria uma faixa com o número do ano que se inicia.
Durante muitos anos, durante todos os anos antigos do passado, eu esperei por essa cena no céu sobre minha cabeça. Às vezes havia nuvens, outras eu não aguentava, quando saía do cochilo, a meia-noite já havia passado, ficaria para o próximo ano. Depois de certo tempo desanimei –como desanimei de ser maquinista da Central do Brasil e de ser padre.
Só agora, com a chegada dos invernos mais recentes, talvez numa epifania do fim, ou certamente no prenúncio da noite e do coma na memória, começo a embaralhar as recordações. E volta e meia me surpreendo, não acreditando, mas vendo realmente a mudança de ano, o velhinho fatigado e terminal, o guri roliço e noviço assumindo o comando do destino.
Neste final de ano, abri o champanhe de sempre, fumei um Monte Cristo e nem tive coragem de olhar para cima. Não sei chutar cão atropelado. Não iria dar pontapé num velho carcomido, caindo aos pedaços, exausto de meus dias.

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