São Paulo, segunda-feira, 2 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um traço que corre o mundo

NAGISA OSHIMA
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

O cinema foi inventado como um aparelho que, pela primeira vez na história da humanidade, permitia gravar imagens animadas e revê-las. Mas é comum que as invenções sejam utilizadas com um outro objetivo diferente daquele para as quais foram concebidas. Assim que se descobriu a fascinação do público pela imagem animada, comerciantes espertos compreenderam os lucros que se poderiam tirar desse novo tipo de espetáculo.
Um ano depois de sua invenção, o cinema chegou ao Japão, na época ávido por imitar a civilização européia. Apesar de algumas tentativas na Europa (sobretudo na França) de utilizar a tela de outro modo que não comercialmente, a tendência dominante no mundo inteiro consistia em encontrar uma maneira de reunir o maior número de pessoas para conseguir benefícios enormes.
Por que o cinema apaixona as massas a esse ponto? Entre outras razões, porque ele representava as esperanças nascidas do desenvolvimento industrial como meio de um progresso ininterrupto em direção à felicidade. Auschwitz e Hiroshima puseram fim a esta ilusão.
O entusiasmo dos povos pelo cinema durou pouco mais de uma década depois do fim da guerra. No Japão, uma das causas dessa admiração do público vinha do fato de o filme trazer um reconforto ao espírito da população mortificada pela derrota e arrasada pela miséria. Os filmes, sobretudo os americanos, levavam a acreditar que, ao fim de um enorme esforço coletivo de reconstrução, encontrava-se um mundo melhor.
Mas uma parte dos filmes nacionais participavam deste entusiasmo, enquanto outros ajudavam a compreender melhor a derrota, a tomar consciência de nossos defeitos e nossos erros. Em nenhum outro momento o conteúdo dos filmes esteve tão de acordo com aquilo que as pessoas queriam ver.
Mas, a partir de 1959, quando o Japão reencontrou ao menos parte de sua prosperidade, o cinema pareceu menos necessário e a frequência começou a diminuir irremediavelmente. Foi também nesse ano que comecei como diretor.
Logo, ao mesmo tempo que o país assistia a imensas manifestações de estudantes contra a renovação do tratado de segurança americano-japonês, a imprensa começava a falar de mim como um representante da "nouvelle vague japonesa" –etiqueta que sempre detestei– por causa de meus filmes "Juventude Desenfreada" e "O Túmulo do Sol".
Depois que o estúdio que me empregava, Shochiku, recusou meu filme "Noite e Nevoeiro no Japão", pedi demissão e me tornei diretor independente, no mesmo dia de 1961 que o presidente do Partido Socialista Democrático foi assassinado a facadas.
Antes disso, o cinema japonês sempre existiu sob a égide de um duplo conformismo, econômico e estético. Os grandes estúdios reinavam sobre a indústria, os roteiros, em sua grande maioria, realçavam o tema da vítima. A identificação massiva com esse estado enchia as salas. Mas, com os anos 60, apareceu uma geração, a minha, cuja formação intelectual havia sido feita depois da derrota. Ela rejeitava tanto a visão de mundo ligada a esta temática como o regime dos estúdios.
Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, pode-se seguir um traço que corre o mundo, o dos centros mais dinâmicos do cinema. Parte da Itália com o neo-realismo em direção à Polônia, depois a "nouvelle vague" francesa, em seguida o jovem cinema brasileiro, sucedido por seu homólogo alemão. Hoje, a China, a Tailândia e a Coréia parecem os países de ponta.
Cada vez que um país registra profundas contradições sociais, sobretudo quando são diretamente experimentadas pelos adolescentes, cineastas aparecem para exprimir sua situação. Trata-se de uma expressão coletiva, que constitui por vezes o tema de seus filmes, mas cuja existência representa a principal manifestação desse estado de fatos.
O Japão conheceu essa época? A resposta é certamente sim. Enquanto 1968 passa como a data do grande movimento da juventude que afetou o mundo inteiro, os estudantes japoneses tinham se revoltado desde o começo da década. Foi o que me fez ser calorosamente acolhido pelos estudantes de Moscou, Varsóvia, Praga e depois da Europa Ocidental, no caminho de Cannes, onde fui apresentar "Morte por Enforcamento" em 1969, apesar da hostilidade dos que contestavam o festival.
Todos os cineastas que começaram depois de 1980 não têm conhecimento do sistema de estúdios, muitos só são diretores em tempo parcial. Eles me parecem, na maioria, absorvidos por eles mesmos, o que se explica em parte pela maneira como a sociedade japonesa se polarizou sobre o desenvolvimento econômico. Serão provavelmente os imigrantes residentes no Japão (vindos a maior parte de outros países da Ásia) que deverão nos tirar desse narcisismo invasor.

Tradução de Fernanda Scalzo

Texto Anterior: História(s) do cinema. Com "s"
Próximo Texto: POTÊNCIA DO ESPETÁCULO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.