São Paulo, segunda-feira, 2 de janeiro de 1995
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História(s) do cinema. Com "s"

JEAN-LUC GODARD
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

Todas as histórias que haveria.
Que haverá ou que haveria? Que houve.
Por exemplo, a história do último magnata, Irving Thalberg.
Um diretor de TV pensa em no máximo 200 filmes por ano. Irving Thalberg é o único que, a cada dia, pensa em 52 filmes.
A fundação. O pai fundador, o filho único. E foi necessário que esta história passasse por ali, um corpo jovem e frágil, descrito por Scott Fitzgerald, para que isso existisse, isso, a força de Hollywood. A força de Babilônia. Uma fábrica de sonho. O comunismo se exauriu de sonhar com fábricas como essa.
E ainda por cima, casado com uma das mulheres mais lindas do mundo.
Ou então a história de Howard Hughes. Mais corajoso que Marmoz e mais rico que Rockefeller. Produtor de "Scarface" e patrão da TWA. Como se Méliès tivesse dirigido ao mesmo tempo a Gallimard e a SNCF (sigla da rede ferroviária francesa). E antes que a Hughes Aeronave mergulhasse no fundo do Pacífico para salvar os submarinos perdidos da CIA, ele obrigava as estrelas da RKO a passear todo sábado de limusine –a dois por hora, para que os seios não saltassem. E morreu como nem Daniel Defoe ousou matar Robinson.
Ou então, por exemplo, todas as histórias dos filmes que não foram feitas, mais que as outras. Essas a gente pode ver na televisão. Enfim, não exageremos. Nem mesmo cópias, reproduções.
Por exemplo, 1940, Genebra. "A Escola de Mulheres". Max Ophls. Ele cai de costas diante de Madeleine Ozeray enquanto o exército alemão pega o francês pelas costas. E Louis Jouvet, o próprio, desiste do filme. Histórias de beleza, em suma.
A beleza, a maquiagem. No fundo, o cinema nunca fez parte das indústrias de comunicação nem do espetáculo, mas da indústria de cosméticos, da indústria de máscaras, ela mesma sucursal da indústria da mentira. E o apresentador irá todos os dias às 20h ao mercado descrito por titio Brecht e, todo feliz, vai se colocar do lado dos vendedores.
Ou, bem no começo, a história dos dois irmãos. Eles poderiam ter se chamado Abat-jour. Mas se chamavam Lumière, e tinham praticamente a mesma bobina. Desde essa época, há sempre duas bobinas no cinema. Uma que se enche e outra que se esvazia. Por acaso, chamou-se escrava a da esquerda e mestra a da direita.
Mas um distribuidor de cinema é obrigado a se lembrar da câmera e investir nela.
E em seguida que o cinema só se tornou uma indústria de evasão porque era o único lugar onde a memória é escrava.
Herdeiro da fotografia, sim. Mas ao herdar essa história, o cinema não herdou apenas os direitos de reproduzir o real, mas sobretudo os deveres. E se ele herdou de Zola, por exemplo, não foi com certeza de "L'Assommoir" nem da "Besta Humana", mas antes de um álbum de família, quer dizer de Proust e de Manet.
E para ir do começo ao fim deste livro imenso com o qual os homens violam desesperadamente a natureza para semear ali a força de suas ficções, para ir de Giotto a Matisse, e de Madame de la Fayette a Faulkner, é preciso menos tempo que necessitou a locomotiva para tornar-se um TGV (sigla do trem-bala francês).
Isso para dizer que o cinema nunca foi uma arte, e menos ainda uma técnica.
Então não é uma técnica, nem uma arte.
Uma arte sem futuro, avisaram logo e gentilmente os dois irmãos. Agora, cerca de cem anos depois, vê-se que eles tinham razão. E se a televisão realizou o sonho de Léon Gaumont –levar os espetáculos do mundo todo ao mais miserável dos quartos–, foi reduzindo o céu gigante dos pastores à altura do Pequeno Polegar.
E em seguida, nós os compreendemos mal.
O pai deles lhes pediu: tirar a imagem da caixa, e não fazê-la entrar. Eles disseram presente. Sem futuro, então presente, uma arte que dá. Já que recebeu. Digamos, a infância da arte.
Além disso, os saint-simonianos, eles chamavam como, o fundador? Infantil. O barão infantil. E se eles sonhavam com o Oriente, eles não o chamaram estrada da seda ou do rum, mas estrada de ferro. Porque na estrada o sonho se endureceu e mecanizou. E é a noite do século 19, o início do transporte em comum. E é a aurora do século 20, o início do tratamento da histeria. É o velho Charcot que abre para o jovem Freud as portas da noite. Cabe a ele encontrar a chave dos sonhos.
Mas onde está a diferença entre Lilian Gish à deriva sobre uma massa de gelo em "Way Down East" e Albertine delirando na Salpêtrière.
É preciso ver isso com cuidado: a infância da arte e não outra coisa. Em seguida, serão suficientes uma ou duas guerras mundiais para assassinar essa infância, e para que a televisão se torne esse adulto imbecil e triste que dilapida a herança.
Mal uma arte, mal uma técnica. Um mistério.
E para resolvê-lo, uma simples poção mágica, para iluminar nossa lanterna, ela também mágica, não é senhor Emile? Quer dizer, a história do cinema está primeiro ligada à da medicina. Os corpos torturados de Eisenstein, mais do que a Caravaggio e El Greco, se dirigem aos primeiros esfolados de Vésale. E o famoso olhar de Joan Fontaine diante do copo de leite não responde a uma heroína de Delacroix, mas ao cachorro de Pasteur. Porque toda a fortuna da Kodak foi feita com placas de rádio, e não com Branca de Neve.
Também porque, uma vez que quis imitar o movimento da vida, era normal, é lógico que a indústria do filme tenha primeiro se vendido à indústria da morte. Quantos roteiros sobre recém-nascidos, sobre flores nascendo, e quantos sobre rajadas de metralhadoras? Porque eis o que se passou. A fotografia podia ter sido inventada a cores. Elas existiam.
Pois bem. Na manhãzinha do século 20, as técnicas decidiram reproduzir a vida. Inventou-se então, primeiro, a fotografia. Mas como a moral oficial ainda era forte, e se preparava para tirar da vida até sua identidade, decidiu-se usar o luto dessa mortificação. E é com as cores ocidentais do luto, o preto e o branco, que a fotografia passou a existir. Não por causa da gravura. O primeiro buquê de flores de Niepce, ou de Nadar, não copia uma litogravura de Doré, mas a nega.
E muito rapidamente, para mascarar o luto, os primeiros technicolors –e depois os scanners– usarão as mesmas dominantes que as coroas funerárias. E Scarlett se dirá uma segunda vez que ela pensará nisso amanhã, em quê?, na felicidade. Porque é preciso estar de luto, mas esquecendo, não é? E Madame de Sta‰l nos ensinou como. Ela escreve a Napoleão: a glória, senhor, é o luto resplandecente da felicidade.
A glória. Os projetores. O Oscar. Os festivais.
Mas para cinquenta Cecil B. De Mille, quantos Dreyers? Entretanto, o ilustre autor de "Dies Irae" também seguiu Lumière e cia., enquanto ninguém seguiu Etienne Jules Marey, que achava ridículo representar a vida –e obsceno trocá-la por dinheiro–, já que somente uma clara visão dos traços permitia desvendar o segredo. Exceto uma vez, quando um dia um certo T projetou para seu patrão o movimento dos operários e o Ford T –de Taylor– saiu em cadeia, permitindo pensar na ocasião em escravidão.
As duas bobinas, as duas lojas. Mas se uma debita, o que ou quem a outra credita? Porque desde o começo foi uma questão de dinheiro, e é isso que as autoridades de todos os países decidiram celebrar cem anos depois, memorizando as honras em vez de honrar a memória. Os livros sagrados nos disseram, entretanto, que, antes de partir em viagem, as filhas de Loth quiseram olhar para trás uma última vez. E que elas foram transformadas em estátuas de sal.
Bom, só se filma o passado, quero dizer: aquilo que se passa.
E foram sais de prata que fixaram pela primeira vez a luz. Acreditou-se então que se tratava de tocar a moeda comprando a crédito essa roupa sem costura da realidade com que sonhava André Bazin. Eu também acreditei por um instante que o cinema autorizava Orfeu a olhar para trás sem deixar morrer Eurídice. Eu me enganei.
Orfeu vai ter que pagar.

Tradução de Fernanda Scalzo

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