São Paulo, segunda-feira, 2 de janeiro de 1995 |
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Cinemateca exibe filmes sobre pintura
DANIEL PIZA
Abrindo o ano do centenário da sétima arte, os filmes serão exibidos em francês, sem legenda. Mas, mesmo para quem não domina o idioma de Voltaire, o ciclo vale ver porque é extraordinário –para usar a palavra justa. Ele foge ao lugar-comum de cineclubes (Godard, Fellini, Antonioni, Bergman), traz o que nenhuma TV não-especializada traz, e não cai nos clichês que seu título sugere ("Van Gogh" de Pialat, "Passion" de Godard, Ordet etc.). Não há ficção, na verdade; apenas documentários. Entre os mais célebres, "Le Ballet Méchanique", de Fernand Léger, é o único dos 30 filmes assinado por um artista plástico de primeiro time. Não é, porém, o único com assinatura célebre. Alain Resnais, Jean Eustache e Robert Hessens são alguns dos bons diretores franceses presentes ao ciclo organizado por Cinemateca Brasileira, Consulado Geral da França em São Paulo e Ministério da Cultura. O filme de Léger está programado para quarta, dentro de um bloco (das 19h25 às 20h45) em que constam curta-metragens de narrativa menos convencional. Neles, a tela de cinema procura recriar a tela da pintura, traduzindo nos focos, cortes e tomadas de uma arte a plasticidade inerente à outra. No caso de Léger, a plasticidade recriada é a de sua própria obra cubofuturista. Mas isso não quer dizer que os outros filmes sejam documentários caretas. Quase nenhum padece do mal "educativo", mesmo que muitos sejam didáticos. E até quem não entende o que está sendo dito pode entender o visto. Um dos mais didáticos é "Le Sublime et la Ferocité - Brutus de David" (1989), de Gilles Delavaud, em exibição hoje. O filme disseca construção formal e conteúdo histórico da tela "Os Litores Levam a Brutus o Corpo de seu Filho", de Jacques-Louis David (1748-1825), mostrando que aquele aparente classicismo, na verdade, arquiteta contradições dramáticas. Também hoje, "La Pisseuse de Pablo Picasso" (1991), sobre o retrato da mulher urinando pintado por Picasso (1881-1973), é um filme didático por outro caminho: usa ironia e inventividade para mostrar a educação formal que uma tela quase vulgar pode conter. Outro filme que sabe aproximar o espectador da obra é "Le Tintoret d'après Jean-Paul Sartre - La Déchirure Jaune" (Tintoretto segundo Sartre - A Incisão Amarela), de Didier Baussy, quarta. O documentário, filmado em 1983 na magnífica Scuola San Rocco, em Veneza (Itália), parte de um texto (incompleto, como sempre) do pensador francês que demonstra como a "mise-en-scène" das figuras e a integridade das cores em Tintoretto (1518-1594) foram chaves para contestar a perspectiva renascentista. O filme é primoroso por mostrar com movimentos de câmera o que a expressão de Sartre no título detecta: em Tintoretto, o amarelo que incide no quadro "A Crucificação" não expressa angústia –é a própria angústia. Há muito que aprender também em "Guernica" (1950), de Resnais e Hessens, com texto do poeta Paul Éluard, e sobretudo em "Van Gogh" (1948), de Resnais. Este último, que passa amanhã, é um dos filmes mais indispensáveis do ciclo. Feito em preto e branco, trata do gênio colorista com propriedade surpreendente. Dá vontade de apalpar a tela. Os roteiros vertiginosos criados pelas vilosidades de tinta aplicadas por Van Gogh (1853-1890) estão todos lá, como a sugerir: o cinema é sim, antes de mais nada, imagem. Mas outro filme, "Cézanne par Rainer Maria Rilke" (1982), de Pierre Bechot e Denis Freyd, amanhã, parece corrigir a sugestão. Aqui, o ritmo vem não da pintura de Cézanne (1839-1906), mas da narrativa formada pelas cartas em que o poeta Rilke descreve dias contínuos de observação e obsessão provocadas por aquele equilíbrio e simplicidade. Trata-se do encontro de um visionário e um gêometra, de um mestre do acúmulo e um da síntese. Um encontro, enfim, que é a própria essência do cinema: um veículo que corre sobre duas rodas, a da pintura e a da narrativa. Texto Anterior: 'Ópera Mundi' faz espetáculo da criação Próximo Texto: Guerreiro jamais faz ameaças Índice |
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