São Paulo, segunda-feira, 2 de janeiro de 1995
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Faltaram javalis

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não me faltou boa vontade: li com atenção e assombro o noticiário sobre as festanças do poder em Brasília nesse início de ano e mandato. Fiz consciente laboratório para roer-me de inveja diante dos comes e bebes servidos na ocasião. Li e reli as iguarias servidas e anotei uma grave lacuna. Nesses banquetes de corte sempre são servidos javalis. Quem lê as crônicas da Idade Média sabe que o poder e a glória de um príncipe que se coroa rei devem ser medidos pelo número de javalis caçados e abatidos pelos cortesãos em louvor do novo soberano.
Oscar, o Impiedoso, que subjugou hordas bárbaras no século 9 e foi elevado ao trono num dia de São Silvestre, teve em seu banquete nada menos do que 680 javalis. Olavo, o Inominável, que dominou imensas províncias na velha Escandinávia, mandou servir, além de 750 javalis, outros tantos quilos de ostras do Báltico –aperitivo que naqueles tempos de luxúria e crueldade era tido como afrodisíaco.
De pasmar, contudo, foi o banquete que assinalou o reinado de Agar, o Imundo: as festas duraram uma semana. E além de finos crustáceos do citado Báltico, os comensais saciaram a fome e a vaidade com nada menos de 958 javalis de grande porte e tenra idade.
Como se vê, nada que se compare à temperança da corte brasiliense, que nesses pormenores é de monástica frugalidade. Daqui a cinco, seis séculos, a posteridade não acreditará que sequer um mísero e escasso javali tenha sido sacrificado à gula patriótica de uma corte que, em outros departamentos, é de uma voracidade de canibal antropófago diante de missionário pentecostal.
Para falar a verdade, nunca me foi dada a honra de provar carne de javali. A menos que eu a tenha comido sem saber por essas tascas plebéias onde mato minha fome sem alegria, apenas por necessidade. Ainda bem que já estão falando na possibilidade de um retorno de Itamar, o Franco, que com maior experiência, e sem abandonar o pão de queijo de Juiz de Fora, na certa saberá providenciar javalis para a próxima festança. Nesse dia, prometo algum esforço para fazer parte do povo eleito.

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