São Paulo, quarta-feira, 4 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Irmãos Coragem' reforça contradições

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Novela e política andam juntas desde dos tempos da primeira versão de "Irmãos Coragem". Foi falando de Brasil e ajudando a construir o ideal de "Brasil país do futuro" que as telenovelas se tornaram um código comum, linguagem privilegiada da aldeia Global que integrou o país nos anos 70. É falando de Brasil que o remake de "Irmãos Coragem" comemora 30 anos de Globo estreando junto com um governo que pretende reinterpretar o sonho da modernidade.
Inspirada na linguagem coloquial e na vocação "realista" de "Beto Rockfeller", a primeira versão de "Irmãos Coragem" inaugurou uma década em que as novelas passaram a indiscutível primeiro plano na cultura brasileira. Diluindo as fronteiras entre o melodrama e a política, Janete Clair criou um épico anti-tradicionalista no interior do Brasil.
Aqui estão presentes os elementos básicos de muitas novelas futuras. A vida na cidade grande –onde costumes e consumo estão liberados– contrasta com a vida no Brasil "moralista" "que ainda vive de um jeito diferente", como diz Duda, o jogador de futebol bem-sucedido que volta à sua terra natal.
O núcleo rico que se opõe e se entrelaça com o núcleo pobre. A crítica às relações patriarcais entre homens e mulheres e a ridicularização da figura do coronel, que se tornou símbolo de um Brasil "atrasado" que tanto autores e atores oriundos do teatro de esquerda, como os militares de direita queriam derrotar.
Vinte e cinco anos depois, o remake de "Irmãos Coragem" salienta as consequências não antecipadas de uma modernização selvagem. O apelo à justiça social pronunciado no discurso de posse ecoa nos corpos seminus dos garimpeiros da novela.
Em 70 o garimpo era símbolo de um potencial. Em 95 ele remete ao regime semi-escravista em escala industrial de Serra Pelada. O tratamento hipercuidado de som e imagem criado por Luiz Fernando Carvalho reforçam os paradoxos de um sonho perversamente realizado.
As sequências silenciosas reforçam o caráter de reinterpretação do texto, que no seu didatismo melô carregado guarda a marca da época. As cores carregadas no vermelho e amarelo da mina em câmera lenta berram a tortura dos dias de hoje. Os movimentos de câmera e os enquadramentos cuidados chamam a atenção para as inúmeras possibilidades que a novela apesar de ser novela ainda guarda.
Difícil reinterpretar João Coragem, Lara-Diana, Duda, Ritinha, Jerônimo e Potira. O elenco se esmera. Palmeira vai bem na sua linha "Pantanal"-"Renascer". Gabriela Duarte se sai bem. Suas expressões muito parecidas com as da mãe só realçam seu próprio talento e técnica.
Em 1970, com "Irmãos Coragem" a Globo consolidou uma longa carreira de liderança absoluta centrada em novelas. As novelas se tornaram um dos principais produtos da indústria cultural que se desenvolveu rapidamente junto com um poderoso mercado consumidor. Em 1995, com "Irmãos Coragem", a Globo comemora 30 anos enfrentando a diversificação do mercado televisivo e a esperança de mudança democratizante nas relações da política com as comunicações.

Texto Anterior: Fábulas adoçam as verdades
Próximo Texto: 'Mr. Jordan' salva o dia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.