São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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A REBELIÃO DAS ELITES

CHRISTOPHER LASCH

São a classe trabalhadora e a classe média baixa que defendem limites ao aborto, apegam-se ao modelo familiar de pai-e-mãe como fonte de estabilidade num mundo turbulento, resistem às experiências de "estilos de vida alternativos" e nutrem profundas reservas quanto à atitude positiva ("affirmative action") e outras especulações da engenharia social em grande escala.
Hoje são as massas, e não a elite, que possuem o sentido altamente desenvolvido dos limites que Ortega identificava com a civilização. Os membros da classe trabalhadora e da classe média baixa entendem, ao contrário de seus superiores, que há limites inerentes ao controle humano sobre o curso do desenvolvimento social, sobre a natureza e o corpo, sobre os elementos trágicos da vida e da história humanas.
Enquanto jovens profissionais se submetem a um árduo programa de exercício físico e controles dietéticos planejados para encurralar a morte (para mantê-los em estado de permanente juventude, eternamente atraentes e "recasáveis"), as classes populares, por outro lado, aceitam a decadência do corpo como algo contra o qual é mais ou menos inútil lutar.
Os liberais da classe média alta montaram uma cruzada para sanear a sociedade americana - para criar um "ambiente livre do vício do fumo", para censurar tudo, de pornografia a "discurso hostil" e, ao mesmo tempo, incongruentemente, ampliar o âmbito da escolha pessoal em questões onde a maioria das pessoas sente necessidade de sólidas pautas morais.
Quando confrontados com a resistência a essas iniciativas, os membros da elite de hoje expõem a virulenta hostilidade que repousa (nem tão longe assim) por baixo da face da benevolência da classe média alta. Eles acham difícil compreender por que sua higiênica concepção da vida fracassa ao querer inspirar o entusiasmo universal.
Nos Estados Unidos, a "América média" (em inglês, "middle America", que inclui o México e a América Central) - termo que encerra ambas as implicações, geográfica e social - acaba simbolizando tudo o que se põe no caminho do progresso: "valores familiares", patriotismo irracional e fundamentalismo religioso, racismo, homofobia, visão retrógrada das mulheres.
Os "americanos médios", conforme são vistos pelos formadores de opinião letrada, são irremediavelmente deselegantes, fora de moda e provincianos. São ao mesmo tempo absurdos e vagamente ameaçadores - não porque desejem derrubar a velha ordem, mas precisamente porque a defesa que fazem dela parece tão profundamente irracional que se expressa, no mais alto alcance de sua intensidade, em religiosidade fanática, em sexualidade reprimida, que ocasionalmente explode em violência contra mulheres e gays, e num patriotismo que apóia guerras imperialistas e uma ética nacional de masculinidade agressiva. Simultaneamente arrogantes e inseguras, as novas elites observam as massas com um misto de desprezo e apreensão.
A rebelião das elites contra velhas concepções de prudência e restrição está ocorrendo numa época em que o curso geral da história já não favorece o nivelamento de distinções sociais, mas antes corre cada vez mais na direção de uma sociedade biclassista, em que os poucos favorecidos monopolizam as vantagens do dinheiro, da educação e do poder.
É inegável, claro, que os confortos da vida moderna estão, ainda assim, mais largamente distribuídos do que estavam antes da Revolução Industrial. Era a democratização do conforto que Ortega tinha em mente quando falava da "melhoria do nível histórico". Como muitos outros, Ortega estava impressionado com a inaudita abundância gerada pela moderna divisão do trabalho, pela transformação do luxo em necessidade e pela popularização de padrões de conforto e conveniência anteriormente reservados aos ricos.
Esses fatos (os frutos materiais da modernização) não estão em questão. Em nossa época, no entanto, a democratização da abundância - a expectativa de que cada geração desfrute de um padrão de vida além do alcance de seus predecessores - abriu caminho para uma inversão em que desigualdades antiquíssimas começam a se reestabelecer, às vezes a uma velocidade assustadora, outras vezes tão gradualmente que escapam à percepção.
As pessoas que se encontram entre os 20% mais altos na pirâmide de renda controlam hoje metade da riqueza do país. Nos últimos 20 anos, somente elas tiveram ganho líquido na renda familiar. Só nos breves anos da administração Reagan, seu quinhão da renda nacional cresceu de 41,5% para 44%. A classe média, generosamente definida como aqueles com renda variando de US$ 15 mil até 50 mil por ano, declinou de 61% da população, em 1970, para 52% em 1985.
Esses números transmitem uma impressão apenas parcial e imperfeita de mudanças momentâneas que aconteceram num período de tempo extraordinariamente curto. O crescimento inalterável do desemprego, agora ampliado até incluir trabalhadores de colarinho branco, é mais revelador. Como também o é o crescimento do "contingente da força de trabalho". O número de empregos de meio período dobrou desde 1980, equivale hoje a um quarto de todos os empregos disponíveis.

Não há dúvida de que esse crescimento maciço do emprego de meio período ajuda a explicar por que o número de trabalhadores protegidos por planos de aposentadoria, que subiu de 22% para 45% entre 1950 e 1980, decaiu para 42,6% por volta de 1986. Também ajuda a explicar a diminuição das filiações sindicais e a constante erosão da influência sindical. Toda essa marcha de acontecimentos, sucessivamente, reflete o declínio do emprego manufatureiro e a mudança para uma economia baseada cada vez mais na informação e nos serviços.
A classe média alta, o coração das novas elites profissionais e empresariais, define-se –à parte sua renda que cresce rapidamente– nem tanto por sua ideologia, mas sim por um estilo de vida que a distingue, de forma cada vez mais inconfundível, do resto da população. Trata-se de um estilo de vida glamouroso, ostentoso, às vezes indecentemente esbanjador.
A prosperidade desfrutada pelas classes profissionais e empresariais, que constituem a maioria dos 20% mais altos na pirâmide da renda, deriva em grande parte do emergente modelo conjugal, grosseiramente chamado de "contrato de acasalamento" ("assortative mating") –a tendência de homens se casarem com mulheres que possam contribuir com uma renda mais ou menos equivalente à deles.
Médicos costumavam casar-se com enfermeiras; advogados e executivos, com suas secretárias. Agora, os homens da classe média alta tendem a se casar com mulheres da própria classe, associados comerciais ou profissionais com suas próprias carreiras lucrativas.
"O que ocorre se o advogado de US$ 60 mil se casa com uma advogada de outros US$ 60 mil?", Mickey Kaus pergunta em seu livro "The End of Equality" (O Fim da Igualdade), "e se o funcionário de US$ 20 mil se casa com a funcionária de US$ 20 mil?". Então a diferença entre a renda deles torna-se de repente a diferença entre US$ 120 mil e US$ 40 mil.
"Embora essa tendência ainda esteja mascarada pela média muito baixa dos salários das mulheres, nas estatísticas de renda", Kaus acrescenta, "é óbvio para praticamente todos, até mesmo os especialistas, que algo assim está de fato ocorrendo". É desnecessário procurar muito além uma explicação para a atração do feminismo pela classe profissional e empresarial.
Como deve ser descrita essa nova elite social? Seu investimento em educação e informação (e não em propriedades) distingue-a da burguesia rica, cuja ascensão caracterizou um estágio anterior do capitalismo, e da velha classe proprietária –a classe média, no estrito senso do termo–, que formava o grosso da população. Esses grupos constituem uma "nova classe" só no sentido de que sua subsistência já não repousa tanto nos títulos de propriedade, mas na manipulação da informação e da especialização profissional.
Eles abrangem uma variedade bastante ampla de ocupações –corretores, banqueiros, promotores e fomentadores de bens imobiliários, engenheiros, consultores de todos os tipos, analistas de sistemas, cientistas, médicos, publicitários, editores, redatores, executivos de publicidade, diretores de arte, cineastas, animadores culturais, jornalistas, produtores e diretores de televisão, artistas, escritores, professores universitários– para serem descritos como uma "nova classe", ou uma "nova classe dirigente". Afora isso, falta-lhes uma perspectiva política em comum.
No secretário do trabalho Robert Reich, a nova elite americana encontrou seu filósofo. A categoria de "analistas simbólicos" criada por Reich em seu livro "The Work of Nations" (O Trabalho das Nações) serve como uma descrição algo tosca mas útil, empírica e bastante despretensiosa da nova elite. São pessoas, segundo Reich as descreve, que vivem num mundo de conceitos e símbolos abstratos, oscilando das cotações do mercado de valores às imagens visuais produzidas por Hollywood e pela Madison Avenue, e que se especializam na interpretação e disposição da informação simbólica. Reich compara-os com as outras duas principais categorias de trabalho: os "produtores de rotina", que desempenham tarefas repetitivas e exercem pouco poder sobre os destinos da produção; e os "servidores em pessoa", cujo trabalho também se baseia na rotina, em grande parte, mas "deve ser fornecido de pessoa para pessoa", não podendo portanto ser "vendido universalmente".
Se levarmos em conta o caráter altamente esquemático e necessariamente impreciso dessas categorias, elas correspondem de maneira bastante aproximada à observação cotidiana, a ponto de nos darem uma impressão razoavelmente acurada não apenas da estrutura ocupacional como também da estrutura de classe da sociedade americana hoje. Os "analistas simbólicos" estão claramente crescendo em riqueza e status, enquanto as outras categorias, que constituem 80% da população, estão decaindo.
O retrato que Reich traça dos "analistas simbólicos" é extravagantemente lisonjeiro. A seus olhos, eles representam o supra-sumo da vida americana. Educados em "escolas particulares de elite" e "escolas públicas suburbanas de alto nível, onde são encaminhados para cursos avançados", eles desfrutam de todas as vantagens que seus pais corujas lhes possam proporcionar.
"Seus professores e mestres estão atentos a suas necessidades acadêmicas. Eles têm acesso a laboratórios científicos do mais alto nível, computadores interativos e sistemas de vídeo em sala de aula, laboratórios de línguas e bibliotecas escolares "high-tech". Seus pares são intelectualmente estimulantes. Seus pais os levam a museus e eventos culturais, expõem-nos a viagens internacionais e lhes providenciam aulas de música particulares. Em casa eles têm livros educacionais, brinquedos educacionais, vídeos educacionais, microscópios, telescópios e computadores pessoais repletos dos mais recentes software educacionais."
Esses jovens privilegiados adquirem graus avançados nas "melhores universidades do mundo", cuja superioridade é provada pela habilidade que têm em atrair estudantes estrangeiros em grande número. Nessa atmosfera cosmopolita, eles superam a cultura popular provinciana que impede o pensamento criativo, segundo Reich. "Céticos, curiosos e criativos", eles se tornam solucionadores de problemas por excelência, à altura de qualquer desafio. Ao contrário daqueles que se envolvem em rotinas entorpecedoras da mente, eles amam o trabalho que fazem, que os envolve em eterno aprendizado e infinita experimentação.
Os intelectuais antiquados tendem a trabalhar sozinhos e serem ciumentos e possessivos em relação a suas idéias. Por comparação, os novos trabalhadores intelectuais –produtores de "insights" de alta qualidade em uma variedade de campos, indo do marketing e das finanças até a arte e o entretenimento –trabalham melhor em equipe.

Continua à pág. 6-6

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