São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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A REBELIÃO DAS ELITES

CHRISTOPHER LASCH

A "capacidade de colaboração" dos novos trabalhadores intelectuais estimula o "pensamento sistemático" –a habilidade de enxergar problemas na sua totalidade, absorver os frutos da experiência coletiva e de "discernir sobre causas, consequências e relacionamentos mais amplos".
Uma vez que o trabalho deles depende tão pesadamente do "trabalho em rede", eles se estabelecem em "bolsões geográficos especializados", habitados por pessoas como eles próprios. Essas comunidades privilegiadas –Cambridge, Silicon Valley, Hollywood– transformam-se em centros extraordinariamente elásticos de empreendimentos artísticos, técnicos e promocionais. Esses novos trabalhadores representam o epítome da conquista intelectual, na apaixonada visão de Reich, e da boa vida concebida como a troca de "insights", "informação" e mexericos profissionais.
Uma vez que alcance uma massa crítica, a concentração geográfica de produtores de conhecimento estimula incidentalmente um mercado para a crescente classe dos "servidores em pessoa", que suprem as necessidades daqueles. "Não é por acidente", diz Reich, "que Hollywood abriga um número visivelmente grande de professores de canto, treinadores de esgrima, instrutores de dança, agentes de artistas e fornecedores de equipamento fotográfico, acústico e de iluminação. Também encontrados nas proximidades estão restaurantes com a atmosfera adequada, favorecida por produtores que cortejam diretores e diretores que cortejam roteiristas, e todos cortejando todos em Hollywood".
O acesso universal à classe das pessoas "criativas" iria bem ao encontro do ideal de Reich de uma sociedade democrática, mas como esse objetivo é claramente inatingível, o melhor que existe depois disso é, presumivelmente, uma sociedade composta de "analistas simbólicos" e seus parasitas.
Estes últimos consomem-se em sonhos de estrelato, mas estão satisfeitos, por enquanto, em viver na sombra das estrelas, esperando para serem descobertos. Eles estão simbioticamente unidos a seus superiores na busca contínua por talentos negociáveis, que só pode ser comparada, conforme a imagem retórica de Reich deixa claro, aos rituais da corte. Pode-se ainda acrescentar a observação mais parcial de que os círculos de poder –financeiro, político, artístico e de entretenimento– sobrepõem-se e se tornam cada vez mais intercambiáveis.
Embora Reich se volte para Hollywood por um exemplo particularmente forçado das comunidades "extraordinariamente elásticas" que surgem onde quer que haja uma concentração de gente "criativa", sua descrição do novo tipo de comunidade de elite aplica-se também à capital do país. Washington se torna uma paródia de Tinseltown; executivos adotam as ondas de rádio e TV, criando durante a noite a ilusão de movimentos políticos; estrelas de cinema se transformam em eruditos, até mesmo em presidentes; torna-se cada vez mais difícil distinguir entre a realidade e a imitação da realidade.
Ross Perot lança sua campanha presidencial no programa "Larry King Live" (Larry King ao Vivo). As estrelas de Hollywood tomam parte importante na campanha de Clinton e congestionam a festa da posse, revestindo-a do glamour de uma estréia hollywoodiana. Os âncoras e entrevistadores de TV tornam-se celebridades; e as celebridades do mundo do entretenimento assumem o papel de críticos sociais. O boxeador Mike Tyson publica uma carta aberta de três páginas, da prisão de Indiana, onde cumpre pena de seis anos por estupro, condenando a crucificação que o presidente fez de Lani Guinier.
O erudito de Rhodes, Robert Reich, impressionado pelas estrelas, profeta do novo mundo "da abstração, do pensamento sistemático, da experimentação e da colaboração", junta-se à administração Clinton na incoerente condição de secretário do Trabalho –administrador, em outras palavras, da mesma categoria de emprego ("produção de rotina") que não tem qualquer futuro (conforme sua própria avaliação), numa sociedade composta por "analistas simbólicos" e "servidores em pessoa".
Somente num mundo em que as palavras e as imagens carregam cada vez menos semelhança com as coisas que parecem descrever, seria possível um homem como Reich referir-se a si mesmo, sem ironia, como secretário do Trabalho ou escrever tão ardorosamente sobre uma sociedade governada "pelo supra-sumo". (Da última vez que o supra-sumo teve controle sobre o país, arrastou-o para uma guerra prolongada e desmoralizante no sudeste da Ásia, da qual ainda não se recuperou inteiramente.)
A arrogância da elite, em sua rebelião contra os limites civilizatórios, não deve ser confundida com o orgulho, característico das classes aristocráticas, e que repousa na herança de uma linhagem ancestral e na obrigação de defender sua honra. Nem a bravura nem a cavalaria, nem o código de amor cortês e romântico, com os quais aqueles valores estão intimamente associados, têm lugar na visão de mundo do supra-sumo. Uma meritocracia não vê utilidade da cavalaria ou na bravura, do mesmo modo que uma aristocracia hereditária não o vê na inteligência. Embora as vantagens da hereditariedade desempenhem parte importante na obtenção de status profissional ou empresarial, a nova classe precisa manter a ficção de que seu poder repousa apenas na inteligência.
Daí ela ter pouco senso de gratidão ancestral ou da obrigação de cumprir com as responsabilidades herdadas do passado. Pensa em si mesma como uma elite que se fez sozinha, devendo seus privilégios exclusivamente a seus próprios esforços. Até mesmo a idéia de uma república de letras, que se esperaria atraente para elites com tão grande aposta na educação superior, está quase inteiramente ausente de seu quadro de referências.
As elites meritocráticas acham difícil imaginar uma comunidade, até mesmo uma comunidade do intelecto, que alcance passado e futuro e seja constituída de uma consciência de obrigação intergeracional. As "zonas" e as "redes de trabalho" admiradas por Reich encerram pouca semelhança com comunidades em qualquer sentido tradicional do termo. Habitadas por pessoas em trânsito, falta-lhes a continuidade que deriva de um sentido de território e de padrões de conduta cultivados restritivamente e passados de geração para geração. A "comunidade" do supra-sumo é uma comunidade de contemporâneos, no duplo sentido de que seus membros pensam em si mesmos como imutavelmente jovens e de que a marca dessa juventude é precisamente sua habilidade para se manter no topo das tendências mais recentes.
A identificação e a promoção do "supra-sumo" é o ideal meritocrático. A meritocracia é, entretanto, uma paródia da democracia. Ela oferece oportunidades de avanço, na teoria, ao menos, a qualquer um com talento suficiente para agarrá-las. Mas as "oportunidades para progredir", como observou R.H. Tawney em "Equality" "não substituem uma distribuição geral dos recursos da civilização", da "dignidade e da cultura" de que todos necessitam, "quer progridam quer não".
A mobilidade social não mina a influência das elites; de certa forma, ajuda a solidificar a influência delas ao sustentar a ilusão de que está assentada unicamente no mérito. Incrementar a mobilidade só faz reforçar a probabilidade de que as elites exercerão o poder de forma irresponsável, precisamente porque reconhecem poucas obrigações para com seus predecessores ou para com as comunidades que admitem comandar. A falta de gratidão livra as elites meritocráticas do fardo da liderança; mas, de todo modo, elas estão menos interessadas em liderança do que em escapar da turba dos comuns –eis aí a própria definição do sucesso meritocrático.
A lógica interior da meritocracia nunca foi tão rigorosamente exposta quanto no romance distópico do escritor britânico Michael Young, "The Rise of the Meritocracy 1870-2033" ("O Surgimento da Meritocracia", 1959), um trabalho escrito na tradição de Tawney, G.D.H. Cole, George Orwell, E.P. Thompson e Raymond Williams.

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