São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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A REBELIÃO DAS ELITES

CHRISTOPHER LASCH

O narrador de Young, um historiador escrevendo na quarta década do século 21, relata aprobatoriamente a "mudança fundamental" desse um século e meio, começando por volta de 1870 –a redistribuição da inteligência "entre as classes". "Através de graus imperceptíveis, uma aristocracia de berço transformou-se numa aristocracia do talento".
Graças à adoção de testes de inteligência pela indústria, da extinção do princípio de antiguidade em cargos e da crescente influência da escola às custas da família, "foi dada aos talentosos a oportunidade de crescer até o nível que combina com suas capacidades; e as classes baixas ficaram consequentemente reservadas para aqueles que têm baixa habilidade". No mundo de Young, uma crença doutrinária na igualdade entrou em colapso diante das vantagens práticas de um sistema educacional que "já não requeria que os inteligentes se misturassem com os burros".
A projeção imaginativa de Young lança muita luz nas tendências nos Estados Unidos, onde um sistema aparentemente democrático de arregimentação de elite conduz a resultados que estão longe de serem democráticos –a segregação das classes sociais, o desprezo pelo trabalho manual, o colapso das escolas comuns, a perda de uma cultura em comum. Segundo Young descreve, a meritocracia tem o efeito de tornar as elites mais seguras do que nunca quanto a seus privilégios (que agora podem ser vistos como a recompensa apropriada à perseverança e à capacidade mental), enquanto anula a oposição da classe trabalhadora.
"A melhor maneira de derrotar a oposição", o historiador de Young observa, "é (...) apropriar-se das e educar as melhores crianças das classes baixas enquanto ainda são pequenas." Tanto liberais quanto conservadores ignoram a verdadeira objeção à meritocracia –o fato de ela gradualmente remover os talentos das classes baixas, privando-as assim de liderança efetiva– e se contentam com argumentos dúbios quanto às consequências de a educação não cumprir com sua promessa de fomentar a mobilidade social.
Se cumprisse, eles parecem concluir, ninguém teria presumivelmente qualquer razão para reclamar. Aqueles que são deixados para trás, sabendo que "tiveram todas as chances", não podem legitimamente reclamar de sua sorte. "Pela primeira vez na história da humanidade, o homem inferior não tem pronta nenhuma escora para seu amor-próprio".
Não nos deve surpreender, portanto, que a meritocracia gere uma obsessiva preocupação com a "auto-estima". As novas terapias (conhecidas às vezes coletivamente como um movimento de reparação) buscam opor-se ao opressivo senso de derrota naqueles que fracassam na subida da escada educacional, mesmo quando eles deixam intacta a estrutura de arregimentação de elite existente –a aquisição de credenciais educacionais.
Uma aristocracia do talento é, na superfície, um ideal atraente, que parece distinguir as democracias das sociedades baseadas no privilégio hereditário. A meritocracia, entretanto, acaba sendo uma contradição em termos: os talentosos conservam muitos dos vícios da aristocracia, mas sem suas virtudes. Seu esnobismo carece de qualquer conhecimento das obrigações recíprocas entre os poucos favorecidos e a multidão. Embora estejam cheios de "compaixão" pelos pobres, não se pode dizer que aderem à teoria da "cortesia da nobreza", que implicaria a disposição de fazer uma contribuição direta e pessoal ao bem público.
A obrigação, como todo o resto, foi despersonalizada; exercida por intermédio do Estado, o fardo de sustentá-la recai não sobre a classe profissional ou empresarial mas sim, e desproporcionalmente, na classe média baixa e na classe trabalhadora. As políticas desenvolvidas pelos liberais da nova classe, no interesse dos desvalidos e oprimidos –integração racial nas escolas públicas, por exemplo– requerem sacrifícios das minorias étnicas que dividem com os pobres os centros velhos das cidades, mas nunca dos liberais suburbanos que planejam e sustentam essas políticas.
A um grau alarmante, as classes privilegiadas –numa definição ampla, os 20% do topo– tornaram-se independentes não só das fragmentadas cidades industriais como também dos serviços públicos em geral. Mandam seus filhos para escolas privadas, seguram-nos contra emergências médicas ao inscrevê-los em planos de saúde-empresa e contratam guardas particulares para protegê-los da violência crescente.
Não se trata apenas de não verem sentido em pagar por serviços públicos que já não utilizam; muitos deles já deixaram de pensar em si mesmos como americanos no sentido mais importante de estarem implicados no destino da América para melhor ou para pior. Seus vínculos com uma cultura internacional de trabalho e lazer –em comércio, entretenimento, informação e "resgate de informação"– tornam muitos membros da elite profundamente indiferentes à perspectiva de uma derrocada nacional.
O mercado em que as novas elites operam é hoje internacional em seu campo de ação. Suas fortunas estão vinculadas a empreendimentos que operam para além das fronteiras nacionais. Elas estão mais preocupados com o suave funcionamento do sistema como um todo do que com qualquer uma de suas partes. Sua lealdade –se é que o termo em si não é anacrônico nesse contexto– é internacional, muito mais do que regional, nacional ou local. Elas têm mais em comum com seus parceiros em Bruxelas ou Hong Kong do que com as massas de americanos que ainda não estão ligados na tomada da rede de comunicações global.
Na economia global sem fronteiras, o dinheiro perdeu seus vínculos com a nacionalidade. David Rieff, que passou vários meses em Los Angeles coletando material para seu livro "Los Angeles: Capital of the Third World" (Los Angeles: Capital do Terceiro Mundo), relata que "pelo menos duas ou três vezes por semana (...) eu podia estar certo de que ouviria alguém dizer que o futuro 'pertencia' à orla do Pacífico". O movimento de dinheiro e gente cruzando as fronteiras nacionais transformou "toda a noção de território", segundo Rieff. As classes privilegiadas de Los Angeles sentem mais afinidade com seus parceiros no Japão, em Cingapura e na Coréia do que com a maioria de seus compatriotas.
A mutante estrutura de classe dos Estados Unidos espelha mudanças que estão ocorrendo em todo o mundo industrial. Na Europa, os plebiscitos sobre a unificação revelaram um largo e profundo abismo entre as classes políticas e os membros mais humildes da sociedade, que temem que a Comunidade Econômica Européia venha a ser dominada por burocratas e técnicos destituídos de qualquer sentimento de identidade ou compromisso nacional.
Até mesmo no Japão, verdadeiro modelo de industrialização bem-sucedida nas duas ou três últimas décadas, pesquisas de opinião pública realizadas em 1987 revelaram uma convicção crescente de que o país já não pode ser descrito como de classe média, tendo as classes populares fracassado na partilha das imensas fortunas acumuladas em bens imóveis, finanças e industrializados.
Fora das democracias industriais, com suas crescentes polarizações sociais, a disparidade global entre riqueza e pobreza tornou-se tão óbvia que não é sequer necessário rever a evidência da desigualdade crescente. Na América Latina, África e em grande parte da Ásia, o crescimento absoluto em números, juntamente com o deslocamento das populações rurais por causa da comercialização da agricultura, tem sujeitado a vida urbana a tensões sem precedentes.
Surgiram vastas aglomerações urbanas –já não podem ser chamadas de cidades–, transbordando pobreza, desolação, doença e desespero. Paul Kennedy projeta 20 dessas megacidades para o ano de 2025, cada uma com uma população de 11 milhões ou mais. A cidade do México já terá mais de 24 milhões de habitantes por volta do ano 2000; São Paulo, mais de 23 milhões; Calcutá, 16 milhões; Bombaim, 15,5 milhões.

Continua à pág. 6-7

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