São Paulo, segunda-feira, 9 de janeiro de 1995
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Responder é preciso

PAULO TARSO FLECHA DE LIMA

No início de dezembro último, a embaixada do Brasil em Washington viu-se confrontada com três relatórios distintos sobre direitos humanos e democracia, publicados, respectivamente, pelo escritório norte-americano da Anistia Internacional, pela Human Rights Watch e pela Freedom House. Todos contêm críticas inaceitáveis e levianamente formuladas a propósito da realidade brasileira.
As três organizações não-governamentais são conhecidas com reputação estabelecida e público cativo. O que dizem repercute internacionalmente, e não só na grande imprensa, mas também junto a círculos mais especializados, políticos e econômicos.
Seus documentos são usualmente lidos como retratos fiéis da realidade, e não como a simples manifestação de um juízo de valor, adequado ou não. Contribuem para modelar muito da imagem pública que um país pretende ter internacionalmente, nas esferas da cidadania, Justiça e respeito aos direitos humanos. Afetam, em última análise, a percepção que se tem da estabilidade política e social dos Estados.
A tamanho poder de influência deveria corresponder sólido compromisso com valores tais como objetividade e verdade. Tal, porém, não ocorre. Mesmo uma leitura superficial revelará a carga de entranhado preconceito que –por má-fé ou ignorância– contamina, no essencial, as avaliações sobre o Brasil. A título meramente ilustrativo, recolhi algumas citações, pinçadas a esmo, nos recentes relatórios a que me refiro (os grifos são meus):
"O Brasil é uma democracia e no entanto crianças de rua, homossexuais e prostitutas são regularmente levados sob custódia policial e desaparecem, como parte de uma política governamental de 'faxina social"' (Conferência à imprensa do diretor da Anistia Internacional, EUA, em 1/12/94).
"(...) as eleições (de 1994) (...) foram conduzidas de forma relativamente livre, (...) depois de uma campanha presidencial repleta de controvérsias e escândalos" (capítulo sobre o Brasil. Relatório de 1995 da Human Rights Watch, 10/12/94).
"Outro grupo de democracias em risco são os países onde o processo político e o sistema judicial estão maculados por altos níveis de corrupção e/ou pela influência dos cartéis da droga. Estes (países) incluem o Brasil (que este ano registrou progressos na expansão dos direitos políticos (...)" (Relatório 1995 da Freedom House, 15/12/94).
Inverdades óbvias, às quais se associa a falta quase total de registro dos muitos progressos que o Estado e a sociedade brasileira vêm realizando, há mais de uma década, em termos de modernização política, social e econômica –refletindo uma real e vigorosa mobilização da cidadania e um novo elenco de prioridades do poder público.
Temos, portanto, um retrato falso do país, que seria caricato, pelo distanciamento da realidade, não fossem os ônus –concretos e potenciais– dele decorrentes.
Como qualquer sociedade mais complexa, é certo que temos problemas e desequilíbrios, cuja solução demandará grande esforço e empenho. O que nos distingue, porém, é que temos enfrentado desafios em ambiente de discussão franca, com a participação de toda a sociedade e, sobretudo, sem a arrogância de nos considerarmos donos de uma verdade a ser imposta ao resto do mundo.
Sem querer generalizar em relação a toda a comunidade de ONGs (Organização Não-Governamental), fica-me a pergunta: terão algumas dessas entidades –ironia do destino– assumido o papel que no século passado se atribuía aos colonizadores? Estarão a querer nos ensinar as virtudes de uma civilização que imaginam não partilharmos? Ou será o mundo mais complexo que a visão que dele se possa ter de uma sala refrigerada em Manhattan?
Por tudo isso, creio descabido que nos perpetuem na posição de vilões internacionais. Como um incansável e confesso defensor da honra pátria, cidadão brasileiro antes que embaixador em Washington (EUA), não poderia assistir passivamente à desonestidade intelectual, à inércia e à inépcia analítica reinantes entre algumas entidades não-governamentais de direitos humanos.
Lembro, entretanto, que o embaixador não se ergue contra fatos. Profliga, sim, visões distorcidas da sociedade nacional. Em quatro décadas a serviço do Itamaraty e do Brasil, tarefa de que sempre me procurei desincumbir com sentido de missão e equilíbrio profissional, poucas vezes deparei tanta predisposição para requentar chavões e tão pouco senso crítico. É lamentável que assim seja.
Apreciador da poesia e da prosa de Pessoa, não partilho, no entanto, do desencantado ceticismo daquele que vê o universo sem ideal nem esperança. Portanto, responder é preciso.

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