São Paulo, quinta-feira, 12 de janeiro de 1995
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O pecado original nuclear

OTHON LUIZ PINHEIRO DA SILVA

Os contratos comerciais decorrentes do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, em 1975, são a prole bastarda, fruto do acasalamento da rivalidade atrasada e desnecessária, que assolava as relações Brasil-Argentina, na década de 70, com a tecnoburocracia oficial. Na realidade, com o acordo pretendíamos, de forma rápida e via transferência de tecnologia da Alemanha para o Brasil, dominar o ciclo do combustível nuclear.
Estes contratos tiveram resultados desastrosos: foram despendidos bilhões de dólares do contribuinte brasileiro, sem que se gerasse um único quilowatt-hora e sem que nenhuma tecnologia sensível, relevante para o domínio do ciclo do combustível nuclear, fosse transferida.
Anteriormente, em 1972, havia sido assinado com a empresa norte-americana Westinghouse, um contrato que deu origem à usina nuclear Angra 1, que, embora tenha gerado alguns quilowatts-hora, provavelmente levaria à falência qualquer empresa particular que fosse proprietária da mesma.
Para o setor nuclear brasileiro, os únicos resultados positivos, e a baixo custo, foram obtidos pelo programa autônomo de desenvolvimento da tecnologia nuclear, resultado da colaboração do Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares de São Paulo) e demais institutos de pesquisa da Comissão Nacional de Energia Nuclear com outras instituições nacionais de pesquisa, entre estas, as Forças Armadas.
Em reunião havida na sede da Agência Internacional de Energia Atômica, em 3 de novembro de 1994, o dr. Hans Blix, diretor-geral daquela agência e autoridade mundial no assunto, ao tomar conhecimento de que, para completar a viabilização tecnológica do ciclo do combustível nuclear, incluindo o desenvolvimento do enriquecimento por ultracentrifugação, haviam sido gastos, em 14 anos, cerca de US$ 270 milhões, comentou que, embora esta quantia possa até ter representado algum sacrifício, a nível de Brasil, era inequivocamente muito pequena, se comparada com desenvolvimentos equivalentes em outros países.
Os resultados do programa autônomo, entretanto, foram muitas vezes divulgados de forma distorcida, e foram pouco digeridos pela sociedade brasileira, que, em virtude do acidente de Goiânia e de vários problemas, sobretudo gerenciais, ocorridos em nossas centrais nucleares, associa a energia nuclear a grandes problemas, gastos e insucessos.
Tais insucessos constituem o que rotulamos de "pecado original" do Programa Nuclear Brasileiro. Que este "pecado original" não seja considerado um "pecado capital" e que o programa nuclear brasileiro não receba a pena capital por tal pecado.
Somos um país dotado de grande potencial hidrelétrico. Entretanto, não há dúvidas de que este potencial, que deverá ser prioritariamente explorado, não será suficiente para atender, a longo prazo, às necessidades mínimas de consumo da sociedade brasileira.
Atualmente, temos instalada em nosso país a capacidade geradora de 0,33 Kw per capita, enquanto Portugal conta com cerca de 0,7 Kw per capita. Somos uma sociedade que subconsome eletricidade. Estima-se que cerca de 40 milhões de brasileiros habitam residências sem iluminação elétrica.
Esta população que vive à margem da eletricidade tende a ser também marginalizada em relação à informação (rádio e TV) e ao conforto que a eletricidade proporciona, inclusive no que diz respeito à conservação e processamento de alimentos.
Tendo em vista possuirmos uma das maiores reservas mundiais de urânio, não devemos ignorar a possibilidade de participação da energia nuclear em nossa matriz energética, evidentemente, não como artista principal e sim como principal coadjuvante.
Dispomos de cerca de 15 a 20 anos para construir nossa base tecnológica. Face às diversas tecnologias envolvidas, a construção desta base tecnológica terá um grande poder multiplicador, e a omissão em construí-la será extremamente detrimental à nossa sociedade, tanto no que diz respeito ao dispêndio direto e em serviços, como também pela perda da oportunidade de alavancagem da nossa indústria.
Pelo fato de o setor nuclear ser tecnologicamente intensivo, ou seja, de quase sempre usar a melhor tecnologia disponível, o nosso programa de capacitação precisará aproximar o setor de pesquisa e desenvolvimento das empresas, que são: a INB (Indústrias Nucleares Brasileiras), Nuclen Engenharia e Serviços e Nuclep Equipamentos Pesados.
O setor de pesquisa e desenvolvimento encontra-se atualmente junto com atividades regulatórias e de controle na CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear). Ao aproximar das empresas o setor de pesquisa e desenvolvimento, é conveniente afastá-lo das atividades regulatórias e de licenciamento, atendendo, assim, a uma reivindicação antiga de grande parte de nossa comunidade científica.
Um programa sério de capacitação implicará integrar o funcionamento das empresas existentes e eliminar os inchamentos e deficiências do setor.
Dentro da ótica de capacitação, é muito desejável complementar a construção da central nuclear Angra 2, pois muito aprenderemos com o término de sua construção, operação e manutenção.
A argumentação de opositores de que os recursos necessários para terminar Angra 2, possivelmente, seriam mais bem utilizados em empreendimentos hidrelétricos atualmente parados, embora lógica, não leva em consideração que, além da energia gerada, teremos certamente ganhos de capacitação, informações tecnológicas e treinamento com a operação e manutenção desta central.
A justificativa para que Angra 2 seja completada não deve ser simplesmente a de que os recursos a serem investidos são menores do que os necessários à construção de uma hidrelétrica equivalente, ou a de que, por termos até o momento gasto uma enorme quantia nesta central, não nos resta outra alternativa senão a de gastar outros US$ 1,4 bilhão para a sua conclusão.
Na realidade, a razão fundamental deve ser: a quantia despendida em decorrência do acordo nuclear Brasil-Alemanha até o presente é verdadeiramente absurda, porém, não podemos cometer o absurdo adicional de não terminar ao menos uma central nuclear negociada dentro do escopo deste acordo, e tirarmos o melhor proveito possível desta "desastrosa" experiência.
A operação de Angra 2, juntamente com Angra 1, acarretará uma demanda de combustível nuclear, o que justificará a existência de pequenas instalações produtoras para as diversas etapas do ciclo do combustível, garantindo a capacitação tecnológica, em todas as fases desta importante área.
Muito embora a ênfase em investimentos públicos deva ser a de minorar os problemas sociais, vale considerar que a falta de energia a longo prazo poderá obstacular o desenvolvimento econômico e, por via de consequência, comprometer o desenvolvimento social do país.
Com os olhos voltados para o futuro, é importante que nos articulemos, de forma a otimizar os esforços de capacitação, também no setor nuclear.

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