São Paulo, sexta-feira, 13 de janeiro de 1995
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Chu sabe bem como usar a faca e o fogo

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um poeta chinês deixou uns versos que contavam a história de um cozinheiro, perito na arte de usar a faca. Transformava a carne branca dos peixes em flocos de neve e as carpas douradas em fios de ouro no prato. A faca se movia com tanta ciência e eram tão frágeis os resultados que um dos jantares do chef foi levado pelo vento e imediatamente transformado em centenas de borboletas.
Pois bem, o senhor Chu, viúvo, cozinheiro de valor (do filme "Comer, Beber, Viver", do diretor Ang Lee), não deixava por menos. Já na apresentação dos créditos aparece sua figura preocupada, fazendo o almoço de domingo para as três filhas. É mesmo um mestre com faca chinesa. O balanço da mão, do ombro, dos pés, dos joelhos, tem um ritmo perfeito, concentrado. Falta o relaxamento. Está nervoso.
A sua cozinha é antiga, com forno de lenha, de carvão, lugar próprio para laquear um pato, grandes bocas de fogão para os "works" cheios de óleo fervente. Panelas de bambu de três andares seguram o vapor. Os ensopados de costela e os de fruto do mar borbulham em panelas fundas. Chu desmembra patos e frangos, esfola caça, escama peixes, dá banhos de gordura em aves hirsutas, assopra patos pelo pescoço, como se fossem bolas de gás.
É, o senhor Chu faz o almoço de domingo, como se estivesse numa cidade antiga, cozinhando para o imperador. É um perfeccionista e um exagerado. Banqueteiro de mil talheres, faz de cada almoço caseiro, um happening culinário, onde voam penas, estrebucham rãs.
O espectador sente-se envolvido por aquele mundo que não existe mais, de panquecas finíssimas, pastéis de beiradas trabalhadas, codornas recheadas. Mas eis que que toca, estridente, o telefone. Chu atende, conciso, objetivo, num aparelho made in Taiwan.
Rompida a mágica, somos trazidos para o real, para o mundo da família Chu. É Taipei, capital de Formosa ou Taiwan. Nova-rica, nova-riquíssima, brega, consumista, trabalhadora, barulhenta, quente, permissiva. Pressões por todos os lados, milhares de carros e motocicletas, auto-estradas, neon, muita flor de plástico, karaokê e bichinhos de pelúcia. Salas douradas de banquetes, tilintar de talheres, lustres de cristal, jantares desmesurados, desperdício igual, ritmo frenético.
É nesse momento de modernização e frenesi de crescimento que pegamos o viúvo Chu e suas três filhas, educadas dentro dos preceitos de amor filial, obediência aos mais velhos, patriarcado, amizades duradouras.
Como conciliar tudo isso com suas sérias carreiras de professora cristã, executiva internacional e garçonete de fast-food? Como escapar de serem trituradas entre a velha e a nova China?
O verniz de modernidade, os jeans, os tailleurs de mini-saia, os saltos altos, as permanentes no cabelo pouco podem fazer. Desequilibrou-se o yin e o yang. E quando isso acontece, é um desastre. Mortes, decepções, surpresas, fraudes. E, desastre dos desastres, o senhor Chu, o senhor cozinheiro, perdeu o paladar. Salga o presunto, esquece de juntar o ingrediente principal... Nada pior para o melhor cozinheiro de Taipei, alguém que tem nas veias a vontade de agradar e seduzir pela comida.
Alguma coisa está faltando, o equilíbrio se rompeu, a mesa da família é tensa, aborrecida, parece que a corda esticada vai rebentar a qualquer momento. É ali que se entendem e desentendem. Quando um deles avisa que tem uma coisinha a dizer, sai de baixo que vem terremoto.
À medida que os conflitos vão sendo resolvidos, à medida em que ele e as filhas acham seu eixo e seus lugares entre o pato de Pequim e o Mc'Donald's, é que a mesa vai se acalmando.
A última refeição, preparada pela filha executiva na velha casa já à venda, é um momento de resolução, e de muita beleza. Ela cozinha com calma, com graça, já dona de sua verdade. Ela, justamente a mais rebelde, é também a mais ligada às tradições. Se seguisse sua vocação mais profunda, seria cozinheira, como o pai.
E é dentro da sopa de gengibre dela, receita da mãe, feita com o maior carinho para o pai, é dentro da sopa, que mestre Chu encontra de vez a alegria de viver, ou melhor, "reng-ching-wei", o sabor do coração vivo.

Festival
O restaurante Le Caesar, no Caesar Park (r. Augusta, 1508, tel. 253-6622), realiza a partir de hoje um festival da cozinha chinesa inspirado nos pratos do filme "Comer, Beber, Viver". Para o evento, os chefs Fung-Chi-Chiu e Song Anzhong prepararam 14 pratos. Os preços variam entre R$ 8,00 e R$ 14,oo (entradas), R$ 12,00 e R$ 29,00 (pratos quentes) e R$ 9,00 (sobremesas).

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