São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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O mundo interior de Louise Bourgeois

VINCENT KATZ

Não faço arte para outras pessoas, não quero agradar, não sou pretenciosa; a arte vem de uma necessidade pessoal e se quiser chamá-la de compulsiva, vá em frente

Folha - Estou interessado em por que a sra. faz tantas diferentes variações de uma mesma imagem.
Bourgeois - Isso tem a ver com minha dificuldade em exprimir o que quero exprimir. Então, preciso fazer experiências com diferentes materiais. Porque o material não é importante para mim. O material é um meio para expressar alguma coisa, não um fim. Esculpir o mármore é um meio de dizer alguma coisa, que é melhor dita em mármore do que em argila.
Eu observo as diferenças –o que posso conseguir deste material que eu não conseguiria deste outro– e pouco a pouco vou buscando a perfeição. É como subir uma escada –vai melhorando aos poucos. Para isso, é preciso uma visão otimista das coisas, de que se você repassar e retornar repetidas vezes, você realmente se aprimora.
É uma espécie de obsessão que, em vez de diminuir vai se tornando cada vez maior, e pode me tornar violenta em função de minha incapacidade de exprimir o que quero exprimir. Minha força motriz vem de dentro. Então, se o exterior me incomoda ou me plagia, ele interfere com meu meio de expressão. Meus meios de expressão são sagrados. Meu estilo é sagrado.
Folha - Existem alguns artistas mais jovens cujo trabalho interessa à sra.?
Bourgeois - Sim, desde que tenham algo a dizer e não sejam derivativos. Tenho curiosidade em relação às diferenças. Porque, por trás disso, você sabe, há a observação de Blaise Pascal: O estilo é o homem. Em francês, é l'homme c'est le style. Tudo que você tem de seu, a única coisa que pertence a você, não são as emoções, porque as emoções são as mesmas no mundo inteiro, mas a maneira pela qual as emoções se expressam, isto é, a maneira pela qual você as demonstra.
Sua maneira de vestir não é maneira de outra pessoa. Assim, o estilo é tudo que temos. E quando meu estilo é emprestado por outras pessoas, eu faço objeções a isso. Eu teria grande prazer se você me trouxesse obras de muitos artistas sem mencionar seus nomes, e a gente pudesse conversar.
Folha - Por que a sra. não quer saber seus nomes?
Bourgeois - Ah! Porque o nome deles poderia inibir minha franqueza. Eu me interesso muito mais pela obra do que pela pessoa.
Folha - Então manter-se a par do cenário artístico contemporâneo nunca foi um de seus grandes interesses?
Bourgeois - Não. As pessoas não têm as mesmas razões para trabalharem.
Folha - O que a sra. acha de viajar para observar diferentes culturas?
Bourgeois - Não, não estou interessada nisso. Antigamente eu promovia festas e viajava. Eu era muito ativa.
Depois, quando tinha três filhos em Nova York, eu viajava da cidade para o campo e vice-versa e isso me tomava muito tempo. Mas eu gostaria de ver o trabalho de artistas sul-americanos e centro-americanos contemporâneos.
Folha - Outra coisa sobre a qual eu quero perguntar é o uso da narrativa em teu trabalho, porque sempre que a sra. descreve um trabalho seu, noto que o descreve como narrativa. Eu realmente aprecio seus escritos, tanto seus textos de ficção quanto as descrições das obras de arte expostas no MoMa, por exemplo.
Bourgeois - Sim, mas eu quero mais do que isso. Sei escrever e sei contar uma boa história. Mas eu quero muito mais do que isso. Quero um exorcismo.
Folha - Isso é para a sra., mas o que quer que de uma pessoa viva quando ela vem ver suas obras?
Bourgeois - Estou me lixando para isso, Vincent. Não faço arte para outras pessoas.
Folha - A sra. faz para si mesma?
Bourgeois - Não faço arte para te agradar. Não sou uma pessoa pretensiosa. Minha arte vem de uma necessidade pessoal, e se quiser chamá-la de compulsiva, vá em frente.
Folha - Como o fato de haver feito um trabalho afeta seus sentimentos em relação ao que a sra. estava tentando fazer, digamos, o que estava tentando exorcizar?
Bourgeois - Eu me sinto aliviada. De repente, sinto liberdade. Em vez de estar possuída pela necessidade de dizer uma coisa, eu a digo, e depois volto a viver. Faz parte da atitude otimista que tenho na vida, de que se você se desapega de suas necessidades, suas obsessões, você vai emergir como espírito livre.
Folha - Gostaria que falasse sobre alguns dos temas em sua obra; o que eu chamo de temas, as imagens. Por exemplo, a aranha que a sra. vem trabalhando muito ultimamente. O que a fascina na aranha?
Bourgeois - A aranha é uma metáfora de certo tipo de pessoa, que é cautelosa, determinada. Eu poderia te dar todas as características, e são qualidades que eu apreciava em minha mãe.
A aranha é laboriosa, confiável e funciona num nível intelectual. Ela planeja e põe em prática. Ela é completamente controlada, trabalha juntamente com outras pessoas iguais a ela, e assim por diante. Assim, foi uma fantástica metáfora para as qualidades que encontrei em minha mãe. E eu sou o exato oposto.
Folha - Mas, ao mesmo tempo, a escultura grande que a sra. fez é um pouco ameaçadora, não é?
Bourgeois - Ameaçadora?
Folha - Ela é grande, é angular.
Bourgeois - Bem, é claro que é ameaçadora. É claro. Ela é ameaçadora. Não estou interessada na aranha enquanto tal. É uma metáfora.
Folha - Mas eu diria que muitas das qualidades positivas que enumerou se aplicam à sra. também. A laboriosidade, certamente.
Bourgeois - Não, nada disso. A aranha planeja. Ela é uma pessoa interessada exclusivamente na estratégia. Ela faz as coisas visando a um fim. Já eu explodo, e explodir certamente não faz parte do meu plano. Não é muito estratégico. Acontece porque não consigo evitar.
Folha - A sra. pode me contar alguma coisa sobre a escultura chamada Le Défi, aquela com todos aqueles recipientes de vidro?
Bourgeois - Le Défi é sobre a fragilidade das coisas.
Folha - Qual foi a inspiração de Le Défi?
Bourgeois - Le Défi é um desejo. Não, é resolução de problemas. Quando você é incontrolável em tuas reações, você paga um resgate. Isto é, você quebra coisas, e quando as coisas são quebradas, é o fim. Quando o vidro se quebra, ele acaba. Como meus pais reparavam tapeçarias, havia uma atitude otimista de que é possível dar vida, voltar a dar vida, ou reinstalar a vida, como um fênix, a coisas que estavam quebradas.
Na vida real não se pode consertar vidro, não dá para consertar terracota. Ver uma coisa como essa é sentir emoções agressivas dentro de mim –fico com medo disso. É um desafio terrível ( défi significa desafio). Assim, essas emoções me desafiam. Tento controlá-las e as controlo arranjando os vidros, criando uma obra de arte. Mas a vulnerabilidade das coisas e a vulnerabilidade das pessoas é um desafio para mim.
Folha - E a vulnerabilidade das memórias também, talvez, pois como a sra. mesma disse, não se pode procurar as recordações. Para mim, Le Défi está muito relacionado a suas celas, porque possui aquele elemento de ser inaproximável. Gostei muito disso –que era uma coisa da qual se se queria aproximar, mas não podia porque havia uma barreira em frente dela.
Bourgeois - As memórias me ajudaram a exprimir o que sinto hoje. Porque o que expresso hoje já vem fervilhando há algum tempo.
Folha - Quanto tempo a sra. leva para fazer uma de suas celas?
Bourgeois - Às vezes elas ficam paradas aí por dois ou três anos. E então, de repente, elas se concretizam. Você sabe o que quero dizer? De repente ela se concretiza, e então aí está.

Tradução de Clara Allain

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