São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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O mundo interior de Louise Bourgeois

VINCENT KATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Louise Bourgeois é a prova viva de que a vida não precisa ser, como algumas pessoas acreditam, um arco, com o ápice na metade sendo seguido por um declínio contínuo e inevitável.
Aos 83 anos, Louise Bourgeois está se divertindo a valer. Não apenas por ser espantosamente produtiva, criando constantemente novas esculturas de grande dimensão e várias edições de gravuras. Também não é o fato de, finalmente, depois dos 70 anos e de haver passado décadas trabalhando duro, ser reconhecida e aplaudida internacionalmente.
Não é sequer o fato de que suas preocupações intelectuais –o corpo, a sexualidade e acima de tudo as relações próprias e impróprias da família (que pode ser vista como metáfora da sociedade)–, que a vêm obcecando desde seus primeiros trabalhos até hoje, tenham repentinamente se transformado nas preocupações de toda uma geração de artistas mais jovens, de Francesco Clemente e Eric Fischl a Kiki Smith e outros.
Na realidade é sua própria garra indomável, sua joie de travailler (alegria de trabalhar), que é tão fascinante e inspiradora.
Os primeiros trabalhos de Louise eram pinturas, desenhos e gravuras. Em 1949, ela se voltou exclusivamente à escultura, o meio de expressão que melhor a define. Louise só voltou a fazer gravuras em 1973. De lá para cá ela mergulhou em várias diferentes técnicas de gravura, criando sequências poderosas como the puritan e Anatomy (ambas de 1990). Em 1993, ela foi eleita para ser a única representante dos Estados Unidos na Bienal de Veneza, com suas esculturas, e atualmente é tema de uma retrospectiva de gravuras no Museum of Modern Art de Nova York.
Louise Bourgeois é uma das pessoas mais produtivas que conheço. Sem dar a impressão de fazer qualquer esforço, ela produz um desfile contínuo de obras impressionantes. É claro que conta com seu estúdio no Brooklyn, em Nova York, que contém uma oficina de solda e três operários fortões que confeccionam suas grandes esculturas. Além disso, há as maquetes que ela mesma cria, seus desenhos e suas edições de gravuras.
Louise vive em West Chelsea, numa grande casa para onde se mudou em 1958 e cujos fundos dão para uma escola pública. Todo dia há um recreio ao meio-dia, e a sala de estar de Louise se enche do barulho de crianças. É o som perfeito para uma mulher cujos trabalhos são todos baseados nas relações familiares. Louise volta repetidamente aos temas da maternidade, do isolamento, da insegurança e da reparação.
Muitas de suas esculturas –em bronze, mármore ou cera– utilizam formas antropomórficas fragmentadas, ou em isolamento ou em grupos. Nature Study é uma escultura em bronze de uma figura felina acéfala, acocorada, com múltiplos seios humanóides. Mamelles é uma série de seios de borracha, e Fillette é uma famosa escultura de látex criada em 1968 (Robert Mapplethorpe fotografou Louise segurando-a), um falo ereto de 60 cm, unido com uma vagina numa única forma hermafrodita.
As imagens de reparação constituem grande parte da exposição de esculturas de Louise Bourgeois no Brooklyn Museum of Art, em 1994, intitulada Locus of Memory. A exposição, focalizando suas esculturas dos últimos dez anos, era espantosa. Uma série de grandes bolas de madeira formavam Wool Gathering. Em outros lugares, o visitante encontrava uma figura humana arqueada ou um armário cheio de recipientes de vidro antigos. No andar de baixo, uma imensa aranha de metal ocupava uma sala inteira.
A exposição era dominada pela mais recente série de trabalhos de Louise. Intitulados Cells, são salas, em algumas das quais o espectador pode entrar e em outras não, que combinam objetos encontrados –portas, janelas, cofres– com elementos esculturais criados pela artista. Estas celas são poderosas câmaras memoriais, que trazem à mente tanto o encarceramento quanto a privacidade.
Louise Bourgeois é uma mulher enigmática. Dona de aguçado senso de humor, tem uma vida pouco convencional, exatamente como sua obra, controvertida. Seu trabalho é cru e direto, tratando quase exclusivamente das questões psicológicas próprias a ela, todas as quais derivam de sua infância e das complicações que sentiu na situação de sua família. Quando conversa, Louise se mostra alternadamente cheia de opiniões próprias e decididas, poética e às vezes fragmentária. Ela não é nunca menos que provocante.

Folha - Estou interessado em algumas das pessoas com quem a sra. já trabalhou ou se deparou. A sra. disse que Léger foi importante para seu trabalho.
Louise Bourgeois - Sim, sim. Quando eu tinha a sua idade, fui a Montparnasse e depois estudei nas chamadas Academies. Na França, naquela época, não havia colecionadores, de modo que os artistas importantes tinham o que chamavam de estúdio, ou academia. Sou grata por isso. Tive muita sorte de estar em Paris naquela época. Léger era uma pessoa especial. Ele se mudava de um lugar a outro, porque nunca pagava seu aluguel. Eu o procurava por toda parte. Finalmente o encontrei, no alto de um terraço. O frio do inverno entrava no estúdio, então deixaram o aluguel bem barato, e ele conseguiu sobreviver.
Ele era excelente professor, porque quase não falava nada. Em primeiro lugar, era quase mudo, e em segundo era normando. Se você pergunta a um normando: Você gosta disso?, o normando responderá: Ah! Talvez sim! E talvez não! Você nunca consegue fazer com que dêem uma resposta inequívoca. Isso o tornava muito sutil como artista, porque ele nunca fazia um verdadeiro elogio, mas, por outro lado, sempre deixava você acreditar que ainda poderia ser recuperado. Léger também se interessava em profondeur –na profundidade das coisas. Ele dizia: Louise, você não é uma pintora bidimensional, é uma pintora tridimensional. O que te dá tesão é a 'profondeur', o espaço". Assim, Léger me introduziu a idéia do espaço.
Folha - Quero perguntar à sra. sobre cultura e nacionalidade, porque hoje em dia se vê muitos artistas examinando suas próprias origens étnicas e culturais. Eu me pergunto como a sra. vê esse aspecto da arte e como se sente em relação a ele em sua própria arte.
Louise Bourgeois - Isso me interessa como tema de conversas, mas não aparece no meu trabalho. Meu trabalho diz respeito às emoções. E ao subliminar. E à comunicação. Isso é universal, mas não tem nada a ver com o étnico. É verdade que se você falar sobre os franceses, por exemplo, eles têm características nacionais. Eles se irritam com facilidade, têm tendência a se magoarem, a terem sensibilidade excessiva às críticas. É por isso que temos o duelo no século 19.
Estou falando de um machão –isso não se aplica às mulheres. Mas a mesma emoção em mulheres seria refletida em termos violentos. Então, existe a violência dos franceses, mas não estou interessada em traços étnicos. Eu me interesso pelo que os faz agir, na expressão da violência.
Folha - A sra. se interessa, mesmo um pouco, pela expansão da cultura francesa em países como o Brasil?
Bourgeois - Isso é história. Pertence a um passado educacional. Não é importante para mim. Me interesso por isso, mas não é crucial para mim. Sou apenas uma artista visual, certo? Meu meio, onde quero ser compreendida, é o mundo visual, o mundo do objeto tangível.
Folha - Determinados tipos de arte visual são apreciados em determinados tipos de culturas. Por exemplo, antes do século 20 a arte da África, da Ásia, não era amplamente apreciada no Ocidente.
Bourgeois - Mas não é necessário para um artista conhecer outras culturas. De fato, não é necessário conhecer a história.
Folha - O que um artista precisa conhecer?
Bourgeois - Ele precisa se conhecer. Precisa conhecer os meios de sobreviver. Como pessoa, evidentemente, mas também como artista. E ele precisa saber como é visto e o que é visto. Há um livro de Gombrich que eu recomendo, que fala da idéia do artista como herói.
Bem, Deus sabe que os artistas não são heróis. Você é artista não porque seja virtuoso, não porque queira assumir riscos. Você é artista porque não pode ser outra coisa. Se você conhece a história, isso faz de você um artista melhor, mas não é necessário.
Folha - Me parece que muitos artistas se auto-analisam com sua arte.
Bourgeois - Com certeza.
Folha - Mas a impressão que tenho é que a sra. está mais interessada no poder da psicologia do que na análise, num sentido clássico. Existem muitos tipos diferentes de psicologia.
Bourgeois - Eu não me interesso pela psicologia. Acredito nela. É claro que ela tem suas limitações e nem sempre funciona, mas ainda é uma abordagem científica, e é tudo que temos.
Folha - A sra. foi influenciada pelas tragédias gregas que tratam dessas idéias psicológicas?
Bourgeois - Não, meu trabalho é feito antes. Primeiro, tenho que identificar os problemas. Suponhamos que eu tenha dificuldade em me dar com mulheres –suponhamos, suponhamos, não vá afirmar que isto é fato– e especificamente com a mulher mais velha, a mãe, ou a mulher da mesma idade, uma rival no amor, ou uma filha. Quando se trata do problema da mãe, ela é tão terrivelmente importante, eu passo meses ou anos trabalhando o problema e depois, quando o trabalho está pronto, o crítico ou visitante chega, e diz: Oh, esta é uma ilustração de uma tragédia grega. Não é uma ilustração. A tragédia grega é uma confirmação do que eu fiz. Não é o contrário. É a prova de que seja o que for que eu representei numa obra de arte, ela atingiu você e que você fez uma associação, e isso mostra que ela funciona.
Se você começa como artista, primeiro vive a coisa, certo? Vai suar até resolvê-la, e ela se revela convincente porque você reconhece o mito. Também é importante ver se ela modifica você, se o que fez foi uma experiência. A definição de experiência é que você não é a mesma de antes. Você realmente aprendeu alguma coisa.
Folha - Quais as experiências que a sra. apontaria como tendo sido realmente formadoras? Por exemplo, como ser mãe afetou seu trabalho?
Bourgeois - Ser mãe me torna consciente dos perigos do problema de Medéia. Isso é explicado em Red Room (uma série recente de duas cells, celas, expostas em Nova York, na galeria Peter Blum). Tenho muitas objeções a fazer a Lacan, mas ele estava no caminho certo quando ficou pasmo diante de uma pessoa perturbada, uma mulher totalmente reprimida, que agia de modo muito, muito estranho.
Ele reconstruiu como é que uma pessoa faz aquelas coisas. Como é? Geralmente é através da contrição, da abdicação da sexualidade e da histeria. Lacan fez aquela viagem a partir do que ela falou, que foi: Vou matar meus filhos, vou me matar, vou conhecer essas coisas. Ele poderia ter lido a história de Medéia, mas não precisava. Ela era a própria.
Folha - Essas coisas são representadas na vida real todos os dias.
Bourgeois - Espero que não sejam com muita frequência. Mas uma mulher que não é bem-sucedida no sentido erótico vai se voltar –imersa em frustração e raiva– contra o que mais ama, isto é, vai matar seus próprios filhos.
Folha - Mas a sra. não acha que o sucesso de uma mulher, no sentido erótico, está ligado a seu sucesso no sentido público? Eu me pergunto se a sra. acha que a abordagem da felicidade está ligada à posição das mulheres na sociedade, porque sei que a sra. está muito envolvida em determinadas causas. Sei que certas feministas a adotaram.
Bourgeois - Elas me adotaram. Estão tentando me devorar.
Folha - Como a sra. se sente em relação a isso?
Bourgeois - É ridículo. Ridículo.
Folha - Então isso não é realmente uma preocupação sua?
Bourgeois - Não, de maneira alguma. Porque elas estão completamente equivocadas.
Folha - Por quê?
Bourgeois - Porque elas se voltam contra os homens.
Folha - A sra. não acha possível haver um feminismo que não seja anti-homens?
Bourgeois - Não estou interessada no feminismo. Ele não existe para mim. É uma causa falsa. Estou interessada na histeria. A histeria é histeria. Não é outra coisa qualquer. É uma coisa muito específica. Histeria significa que a mulher, por diferentes motivos, reprimiu sua sexualidade. E então ela fica doida. Bem, obviamente.
Folha - O que mantém a sra. interessada em fazer arte?
Bourgeois - Sempre tenho problemas a resolver. As coisas são muito, muito difíceis para mim, de manhã até a noite, e eu procuro identificar o que me é difícil e tentar melhorá-lo.
Folha - Quando a sra. diz difícil, sinto que quer dizer psicologicamente difícil. Nunca é uma questão apenas estética?
Bourgeois - Nunca. E nunca vem de fora. Vem de uma necessidade de resolver um problema.

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