São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
A água secreta e a pedra impassível
JOSÉ PAULO PAES
Grego da Diáspora, Giorgos Seféris nasceu em Esmirna em 1900 e morreu em Atenas em 1971. Foi diplomata de carreira e como cônsul, depois embaixador, serviu em vários países do Oriente Médio e da Europa. Sua estréia como poeta deu-se em 1931 com Estrofe, uma coletânea de poemas metrificados e rimados que a crítica grega viu como exemplos de "poesia pura" na linha Mallarmé-Valéry. Uma das peças mais originais dessa coletânea era "O ar de um dia", onde a atmosfera urbana de desolação e desencanto já dava sinal de um sentimento de mundo tipicamente seferiano. O mesmo sentimento vai pervagar as estrofes de A Cisterna, poema publicado em 1932 numa tiragem de apenas 50 exemplares. As virtualidades simbólicas dessa palavra-título são desenvolvidas em quintilhas onde versos brancos ocasionais alternam com versos de rima ora toante ora consoante e nos quais a escassez de pontuação torna a dicção ainda mais ambígua. A epígrafe de El Greco logo abaixo do título ressalta a liberdade de representação do artista, que não está obrigado a reproduzir fielmente a realidade concreta. O símbolo da cisterna, com sua água secreta e imóvel ao abrigo das vicissitudes do mundo lá em cima, tem sido objeto de interpretações divergentes. Algo simploriamente, Karandônis a vê como um "símbolo arquitetônico da morte". Embora seja a morte um motivo recorrente no poema, não é o único nem o central. Mais avisado será ver a cisterna como símbolo de interioridade. Da interioridade do poeta, ou melhor ainda, da própria poesia, "emoção relembrada na tranquilidade" segundo a fórmula coleridgeana. O símbolo elegido por Seferis serve à maravilha para corporificar tal fórmula: graças à sua tranquilidade é que, fazendo as vezes de espelho, a água da cisterna alcança refletir (e perpetuar por reflexo) a fugaz agitação do mundo lá em cima: deixasse ela, água, contaminar-se pela mesma agitação, e estaria comprometida a sua imobilidade de espelho. Cumpre ainda atentar num ponto que parece ter passado despercebido dos exegetas do poema: não obstante o isolamento, a secretividade, a água da cisterna se filia, por sua condição de elemento, às águas do oceano (nona quintilha), figuração das tempestades e das angústias da vida. Ou seja, por estar umbilicalmente ligada ao mundo, pode a poesia recolher e integrar-lhe exemplarmente os conflitos –desespero e esperança, culpa e inocência, amor e morte– na unidade da vida: "que lições de silêncio não são dadas/ por uma cisterna à cidade incendiada..." Nesse particular, a água imóvel da cisterna cumpre a mesma função testemunhal dos "mármores... repletos de pálpebras" (quintilha 20ª) que, sapientes e impassíveis, contemplam ao longo dos séculos o cortejo da mortalidade humana. As estátuas de olhos vazados e a impassibilidade da pedra como testemunha do tempo passarão a ser símbolos iterativos na poesia mais madura de Seferis. Nas seis quintilhas finais de A Cisterna, o contraste entre a alvura dos mármores e o negror da procissão do Sepulcro subsume o dilema dia/noite, vida/morte, e como tal implica uma opção entre os diversos passados gregos. Diferentemente de Kaváfis, em cuja obra a Grécia bizantina está tão presente, Seféris como que a escamoteia ao contrapor diretamente em seus poemas, sob a égide da memória mítica, contemporaneidade e Antiguidade pagã. A versão de A Cisterna a seguir apresentada pertence ao elenco de poemas de Seféris que terminei recentemente de traduzir para uma coletânea de sua poesia a ser lançada no primeiro semestre do ano vindouro pela editora Nova Alexandria. Texto Anterior: Saiba quem foi Anatol Rosenfeld Próximo Texto: A Cisterna Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |