São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995 |
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A Cisterna
GIORGOS SEFERIS
O corpo do homem se curva para o solo e deixa atrás de si todo amor sequioso; petrificada ao toque do tempo, logo a estátua desnuda abisma-se no colo pujante que a suaviza pouco a pouco. O amor tem sede de lágrimas e as busca imagem de nossa alma, as rosas curvam-se nas folhas se ouve o palpitar do mundo como um caminhante, acerca-se o crepúsculo depois a noite e, depois da noite, o túmulo. Mas uma cisterna radicou neste chão o refúgio oculto e morno onde coleta o combate com o dia e a noite, em vão. O mundo cresce e se vai e em nada a afeta. As horas passam, sóis e luas alternam mas se enrijou num espelho a água lá dentro ei-la de tocaia, os olhos bem abertos quando as velas vão a pique, todas elas nos confins do oceano que lhe dá sustento. Só, e no seu seio profusão tamanha só, e no seu seio tanta angústia, tantos pesares, gotas após gota lhe pesando e lançando suas redes à distância Se a onda se alarga para além do abraço, é porque pode no abraço se findar; é porque, antes de romper seu próprio traço sobre as areias, pode, a onda do mar desfeita em espuma, nos trazer o amor. Uma quentura estendida como um velo calmo, como um bicho que dormindo esteja após fugir em silêncio da inquietude e ir bater às portas do sono em busca daquele jardim onde a prata goteja. E um corpo abscôndito, um grito profundo arrancado dos subterrâneos da morte como a água que corre viva pelos sulcos como a água que brilha solitária na erva e conversa com as raízes obscuras... Oh, mais perto da raiz de nossa vida que dos nossos pensamentos, nossas obras! Oh, mais perto do irmão cruel que nos arrosta Oh, de repente abrandar-se ao nosso toque a pele de silêncio que nos cerca, esquecermos a culpa que nos consome, deuses, e que tanto aumenta, tanto pesa, oh, poder fugir do saber e da fome! Com subjugar a dor de nossa chaga escapemos à dor de nossa chaga com subjugar o amargor de nosso corpo escapemos do amargor de nosso corpo nasçam rosas do sangue de nossa chaga Tudo volta a ser o que era no princípio para os olhos para os lábios para os dedos larguemos o inveterado malefício casca amarela que as serpentes deixam nos verdes trevos junto do silvedo. Grande e imaculado amor, serenidade! Dentro da febre viva te dobraste certa noite, curva, desnuda, modesta, asa branca por cima do rebanho, como tenra palma que se leva à testa. O mar que te trouxe te levou embora até lá onde os limoeiros florescem e, ao doce despertar das Parcas, agora milhares de rostos, com três rugas só, na procissão do sepulcro comparecem. Chamas do mundo circundante, luzes sobre a primavera que hoje se anuncia, tristes vultos em coroas negras, cruzes passos... e mais passos... lentamente o sino desenrola uma corrente sombria – "Morremos nós! Morrem os nossos deuses!" Branca alvorada sobre a vítima, os mármores que a contemplam o sabem desde sempre, estranhos despojos, repletos de pálpebras, enquanto desfile o cortejo da morte. ... ... ... ... ... Foram-se embora com a sua pena ardente, junto às tochas consumidas, que lhes desenha, sobre a fronte pensa, a vida feliz em pleno meio-dia, quando se apagam os astros e as magias. Mas a noite não crê na madrugada, para tecer a morte é que o amor vive; assim, à semelhança da alma livre, que lições de silêncio não são dadas por uma cisterna à cidade incendiada... Texto Anterior: A água secreta e a pedra impassível Próximo Texto: Breve história dos lexicógrafos Índice |
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