São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Breve história dos lexicógrafos

HÉLIO SCHWARTSMAN
EDITOR DE OPINIÃO

"Todos os outros autores podem aspirar ao elogio; os lexicógrafos só podem aspirar a escapar às críticas"
Andrieux in "Dictionnaire français-anglais"

Esta frase, que aliás consta da abertura do Aurélio –quantos nela já terão reparado?–, resume bem a profissão do lexicógrafo, talvez uma das mais incompreendidas do mundo.
Em primeiro lugar, é bom deixar as coisas claras, lexicógrafo é o nome pomposo que se dá ao sujeito que escreve dicionários. Já dicionário é uma palavra que vem do latim "dictionarius" e significa mais ou menos "coleção de palavras".
Pretendo aqui traçar uma breve, muito breve, história dos dicionários e dicionaristas, cheia de casos pitorescos e anedotas curiosas, e tentarei esboçar algumas hipóteses sobre o porquê de os dicionários serem, ao mesmo tempo, uma espécie de manifestação escrita da verdade revelada e objeto de tantas críticas.
O primeiro "dicionário" de que se tem notícia é uma lista de palavras acádias, língua da Mesopotâmia central, datada do século 7 a.C. É até provável que obras semelhantes tenham sido escritas nos longos séculos que se seguiram. Mas, o simples fato de que, no Ocidente, a tradição de escrever esse tipo de texto só tenha de fato começado no século 1 d.C dá bem a medida do prestígio de que gozavam os lexicógrafos durante a maior parte da Antiguidade.
Verdade seja dita, dicionários eram obras absolutamente dispensáveis nessa época. As línguas então faladas contavam com alguns poucos milhares de palavras. Mesmo o mais pedante dos gregos tinha dificuldades para enfiar mais de umas 4.000 palavras em suas obras.
Foi só quando, muito provavelmente pela ausência de bons dicionários, o grego mais clássico se tornou incompreensível para os gregos que Pamfilo, de Alexandria, elaborou o primeiro léxico grego no século 1 de nossa era. Vários outros se seguiram.
Durante a Idade Média foram publicadas diversas obras, principalmente em latim, então a língua universal.
O primeiro "Aurélio" da história não se chamava Aurélio, mas sim Ambrogio Calepino. Este monge italiano passou a vida a compilar um gigantesco dicionário, não só de latim como também de diversas outras línguas européias, que foi finalmente publicado em Reggio em 1502.
A obra se tornou tão popular que até hoje a palavra "calepino" é sinônimo de dicionário. O primeiro a usar o nome de um lexicógrafo para referir-se à sua obra parece ter sido um obscuro defunto de Lancashire que, em seu testamento de 1568, coloca a seguinte provisão: "Desejo que Henry Marrecrofte venha a possuir meu calepino".
O mais infeliz dos lexicógrafos da história deve ter sido o pobre Thomas Cooper, na elaboração de seu "Thesaurus Linguae Romanae et Britannicae", um dicionário latim-inglês.
É John Aaubrey quem relata o infortúnio de Cooper: "Sua mulher... irreconciliavelmente irritada com o fato de ele ficar até tarde da noite compilando seu dicionário... Quando ele já o tinha pronto pela metade, ela teve a chance de entrar em seu escritório, pegou todas as suas anotações e as atirou no fogo, queimando-as". O paciente Cooper recomeçou tudo de novo e finalmente publicou sua obra em 1565.
E se existe muita dedicação e talvez até algum heroísmo na carreira de um lexicógrafo –não se sabe exatamente o que Cooper fez a sua mulher–, também há os autores que adoram inventar coisas e assim impingi-las a nós, pobres consulentes que nem desconfiamos de como um dicionário é feito.
Em 1599, um holandês conhecido apenas como A.M. resolveu traduzir do latim para o inglês um importante trabalho médico de Oswald Gabelknouer, intitulado "O Livro da Física". Ocorre que o prestativo A.M. já havia há muito abandonado a Inglaterra e, por isso, esquecera quase todo o seu inglês. Isso não o intimidou e ele simplesmente colocou terminações inglesas nas palavras latinas. Alguns de seus amigos na Inglaterra o advertiram de que nenhum inglês teria a menor idéia do que estaria lendo. Novamente, o bravo A.M. não se intimidou e fez uma lista de seus barbarismos, traduziu-os por um sinônimo inglês simples. Alguns exemplos: "Frigifye, reade (leia-se) coole (resfriar); Calefye, reade heat (esquentar); Circumligate, reade binde (ligar)". Robert Cawdrey, autor de um importante dicionário inglês, usou a errata de A.M. como fonte e assim esses barbarismos acabaram entrando no léxico de Albion.
Um outro inglês, Henry Coockerram, foi ainda mais longe. Despudoramente inventou algumas palavras de que aparentemente gostava mas que nunca lera em texto nenhum. Incluiu em seu dicionário termos como: "adpugne", "adstupiate", "bulbitate", "catillate", "fraxate", "nixious", que chegaram a ter alguma existência na língua. Como o sr. Noah Webster teve a excelente idéia de retirar essas coisas de sua obra, não posso lhe contar o que significam.
Lexicógrafos também são frequentemente acusados de perpetuar preconceitos, muitas vezes com razão. É o caso do célebre ensaísta, crítico e lexicógrafo Samuel Johnson, autor de um dos mais importantes dicionários da língua inglesa, datado de 1775. Ao definir a palavra "oat" (aveia), Johnson não consegue esconder seu preconceito contra os escoceses. Ele escreve: "Um grão, que, na Inglaterra, é geralmente dado aos cavalos, mas, na Escócia, alimenta o povo". O ataque é gratuito. Hoje, ele seria perseguido pelos tribunais do politicamente correto.
Se coisas desse tipo ocorrem na lexigrafia inglesa, que está anos-luz à frente da portuguesa, entre nós acontecem coisas ainda piores. De De Morais a Aurélio, as definições das principais palavras da língua são muito semelhantes. As abonações são com grande frequência as mesmas. Os erros etimológicos abundam e se perpetuam. Pior, nem são originais. Um exemplo: quase todos os dicionários da língua portuguesa –há honrosas exceções– dão uma fantasiosa porém poética etimologia para a palavra "eclipse". Fazem-na remontar ao grego "ekleipsis" que significaria "desmaio".
Bem, como dizia a máxima inicial, um dicionarista não aspira senão a não ser criticado. Visto que isso é impossível, seria útil analisar as dificuldades de compilar uma obra léxica.
Se mesmo antes do século 19 os ingleses conseguiram armar tantas confusões, o que não dizer de todas as dificuldades que surgiram do Oitocentos para cá. E a culpa é dos cientistas. Com efeito, até a grande explosão das ciências positivas no século passado, mesmo línguas extremamente ricas como o inglês contavam com umas poucas dezenas de milhares de palavras. Hoje elas são incalculáveis (para os que gostam de números, abro uma exceção, o português deve ter hoje algo em torno de 400 mil vocábulos; o inglês, mais de 1 milhão).
Qualquer um concorda que todo dicionário que não inclua os termos "vaca" ou "mosquito" deve ser atirado no lixo. Ocorre que, do século passado para cá, os entomologistas (pessoas que passam a vida estudando insetos) identificaram mais de 2 milhões de espécies desses abjetos seres. Dicionaristas podem ser loucos, mas não a ponto de querer incluir toda essa fauna cuja única função é perturbar os seres humanos.
E na química então? Se os nomes científicos dos insetos são dados em latim, os dos compostos químicos e drogas sofrem alterações de idioma para idioma. É claro que todo elemento químico deve constar de um bom dicionário. Compostos químicos como água, ferrugem, ácido nítrico também são indispensáveis. Mas o que dizer da delta-dietilamida do ácido lisérgico. Merece uma entrada assim? E estabelecer a lista de palavras que vão aparecer no léxico é apenas a mais básica das tarefas do dicionarista.
O pior é que lexicógrafos e usuários de dicionários em geral acabaram entrando numa perversa espiral dialético-esquizofrênica. Consulentes vêem a obra como a expressão da verdade pura e acabada. É raro ousarem a desafiá-la conscientemente. Já os dicionaristas, quando não erram por conta própria –o que também é raro–, dependem dos erros alheios para dar continuidade a seu trabalho.
Temos uma alternativa-limite. Ou bem eliminamos todos os dicionários, ou bem compilamos o omnilingue dicionário que definirá todas as palavras em todas as línguas (como no paradoxo borgiano da cartografia). Até que essa indecidível decisão seja tomada, é bom que todos os lexicógrafos procurem fazer as melhores obras possíveis e todos os usuários de dicionários procurem consultá-los da melhor forma possível.

Texto Anterior: A Cisterna
Próximo Texto: Prêmios literários são suspensos no Japão; Whitney Huston volta a atuar no cinema
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.