São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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Falta evidência para ligar epilepsia a crimes violentos

JAIR MARI; CELIO LEVYMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os crimes hediondos que têm ocorrido recentemente despertam na população e na mídia uma mistura de temor e curiosidade. Todos mostram-se indignados e procuram compreender o que leva um ser humano a agir de maneira tão sórdida e violenta.
A lei, por um lado, e a psiquiatria e a neurologia, por outro, vão buscar em suas teorias as explicações que lhe parecem mais plausíveis à situação.
Com a intenção de investigar estes discursos, Michel Foucault reuniu ampla documentação leiga, médica e jurídica no livro "Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão", sobre um crime de parricídio cometido por um camponês na França, na década de 30 do século passado.
Dois profissionais da época apresentaram seus pareceres médico-legais.
O médico Bouchard declarou não ter encontrado nada de anormal nas funções do assassino.
Por outro lado, o médico Vastel levantou a hipótese de se tratar de monomania homicida.
Esta seria um tipo de loucura parcial, doença que afetaria uma única faculdade mental com exclusão das outras, permitindo a coabitação de sanidade e razão.
Esta descrição foi proposta por Philippe Pinel no início do século 19. Um terceiro parecer, endossado por Jean Etienne Dominique Esquirol, confirmou o diagnóstico de Bouchard.
Pierre Rivière foi condenado à pena de morte por parricídio, mas teve sua pena diminuída por clemência real a clausura perpétua na prisão de Beaulieu, onde suicidou-se anos depois.
Assassinato por engano
Em 1843 na Inglaterra, Daniel McNaghten assassinou por engano Edwar Drummond, secretário particular de um rico cavalheiro, Robert Peel.
McNaghten apresentava delírios persecutórios e decidiu corrigi-los através do assassinato.
Este foi o caso clássico que permite até hoje a alegação da defesa pela insanidade nos julgamentos.
O problema atual é o de saber se o indivíduo que comete um crime hediondo apresenta um transtorno psiquiátrico ou neurológico determinado.
Além disso, é preciso determinar se a infração cometida pode estar relacionada ao problema e em que medida houve perda da responsabilidade, isto é, da capacidade que cada homem possui de garantir sua autonomia e de escolher seus atos.
Em resumo, deve-se investigar se o criminoso teria agido sob a influência doença.
Opinião na mídia
Vários especialistas se manifestaram através tanto da imprensa internacional quanto da brasileira recentemente, e algumas hipóteses foram sugeridas.
Chamou a nossa atenção aquela que envolvia algumas formas de epilepsia, especialmente a por alguns denominada epilepsia condutopática.
O absurdo do vínculo entre epilepsia e violência, e criminalidade, tem raízes históricas.
Por exemplo, Cambises 2o, rei da Pérsia entre 529 e 533 a.C. e um monarca violento que matou impulsivamente o filho de um seus criados, sofria de epilepsia.
Fatos como esses levaram o estudioso Cesare Lombroso a concluir que os maiores criminosos poderiam ser epilépticos.
Esta teoria lombrosiana, do início deste século, atravessou as duas grandes guerras e contribuiu para a celeuma sempre reatualizada quando se busca vincular psicopatologia e criminalidade.
Em 1976, em Nova York, o policial Robert Tornsney atirou à queima-roupa na cabeça de Randolph Evans, um garoto negro de 15 anos, que o abordara para solicitar uma informação.
Tornsney tentou primeiro se livrar do crime afirmando que havia sido atacado pelo garoto que portava uma arma de fogo, mas não conseguiu manter este argumento por causa das testemunhas e pelo fato de a arma nunca ter sido encontrada.
Posteriormente, Tornsney reivindicou ter epilepsia e que matara Evans num episódio de perda lacunar da consciência, fenômeno que foi denominado como "automatismo de Panfield".
Ele foi confinado em hospital psiquiátrico por dois anos e liberado pela Justiça desde que fizesse utilização diária de barbitúrico. Este é um exemplo do uso jurídico de un diagnóstico médico que não encontra ressonância no meio científico.
Falta de evidências
Neste sentido, dois especialistas norte-americanos, Bruce Hermann, da Universidade do Tennessee (leste dos EUA), e Steven Whitman, da North Western University, em Evanston, Illinois, fizeram uma extensa revisão da literatura técnica disponível para avaliar a relação entre epilepsia temporal, agressão e outras formas de psicopatologia.
A conclusão, publicada no livro Psicopatologia em Epilepsia, pela Oxford University Press (Reino Unido), foi de que não havia diferenças significativas nos níveis de violência entre pessoas com e sem epilepsia.
Esse ponto de vista é compartilhado pela Associação Psiquiátrica Americana, em recente revisão de literatura.
Isenção
Podemos levantar dois pontos importantes na interpretação médica destes problemas.
O primeiro se refere ao fato de as conclusões do envolvimento da epilepsia na criminalidade serem baseadas no relato de casos.
Levando-se em conta que a epilepsia ocorre em cerca de 3% da população, haveria um verdadeiro excesso de pacientes epilépticos entre os criminosos.
Todos os estudos controlados falharam na demonstração desta diferença. Contudo, fica claro que se selecionarmos um número de crimes entre indivíduos que manifestaram crises convulsivas alguma vez na vida fatalmente decidiríamos pela associação hoje declarada espúria.
O fato é que vários médicos não foram bem preparados numa disciplina que hoje é muito reconhecida, a epidemiologia clínica.
O segundo fato importante é admitir que em medicina várias respostas tidas como certas num período passam a ser abandonadas pela comprovação de sua ineficiência.
Neste caso, haveria um viés para uma compreensão pautada num determinismo biológico, que é no mínimo reducionista.
Há vários fatores que podem agir como predisponentes da violência: biológicos (genes, hormônios, neurotransmissores), psicológicos e sócio-culturais (exposição de violência na mídia, abuso sexual na infância, pobreza), que dificilmente atuariam de forma isolada. Ou seja, "de perto, ninguém é normal", parafraseando o compositor Caetano Veloso.
Nos casos dos serial killers é comum a existência de um componente sádico de personalidade; nos assassinatos de massa, o caráter paranóide; e nos parricídios, o melancólico.
Em geral, os crimes mais sórdidos são de autoria de pessoas que nunca fizeram tratamento psiquiátrico.
Certamente o mesmo é aplicado aos aspectos neurológicos, em particular a epilepsia.
Em conclusão, compete ao perito avaliar com isenção e ética a presença ou não de problema psiquiátrico que justifique o ato criminoso, e de aplicar seus conhecimentos dentro dos preceitos atuais da prática médica.

JAIR MARI, 41, médico psiquiatra, é professor adjunto do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina e conselheiro do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo). CELIO LEVYMAN, 38, é médico neurologista e conselheiro do Cremesp.

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