São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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Sobreviventes relatam temporada no inferno

SÉRGIO MALBERGIER
DA REPORTAGEM LOCAL

Ben Abraham, 70, e Kiwa Kozuchowicz, 72, hoje até conseguem brincar ao relatar sua temporada no inferno. Mas levou tempo para conseguirem conviver com a memória da passagem pelo campo de extermínio de Auschwitz.
"Eles (os nazistas) nos transformaram em animais irracionais", diz o escritor Abraham, lembrando que nos campos nazistas seu único pensamento era arrumar comida para sobreviver.
Abraham vivia com os pais em Lodz, na Polônia. Após a invasão das tropas de Hitler (setembro de 1939), foram confinados no gueto da cidade, em janeiro de 1940.
Em agosto de 1944, com os russos avançando na frente oriental, os nazistas levaram os remanescentes do gueto para Auschwitz. O pai de Abraham havia morrido e ele e a mãe embarcaram no trem. Eles já tinham escutado sobre os campos de extermínio, mas não acreditavam.
Ao chegar no campo, os saudáveis foram separados dos considerados inaptos ao trabalho. Crianças, idosos, inválidos, grávidas e mulheres que não se separavam dos filhos eram mandados às câmaras de gás. Abraham, então com 19 anos, foi poupado para o trabalho e nunca mais viu a mãe.
Antes de se vestir e ter os pêlos do corpo raspados, Abraham viu pela primeira vez as chaminés dos fornos crematórios e sentiu o cheiro de carne queimada. Ele passou duas semanas na seção do gueto onde jovens saudáveis esperavam para ser comprados por "industriais" alemães.
"Foram duas semanas que pareceram um século", lembra. Levantavam às 5h, bebiam uma solução de casca de árvores secas com água quente. No almoço recebiam a sopa: "água suja com quatro pedaços de batata com casca". Ao anoitecer cada um comia um pedaço de pão.
Abraham não pensava em fugir. "O campo era cercado por uma cerca dupla de arame farpado eletrificado. Entre elas havia minas e guaritas". Muitas pessoas se jogavam no arame eletrificado para suicidar-se. Abraham só pensava em comer. Quando sonhava, era com o que poderia estar comendo se não estivesse ali.
Dormiam 1.500 no chão de cimento de um barracão com uma placa de que a capacidade ali era para 40 cavalos. "Ficávamos deitados de lado, como sardinhas numa lata. Se alguém saía à noite para ir ao banheiro, não conseguia entrar de novo. Quem tinha tigela para comida fazia as necessidades dentro dela", conta.
Depois das duas semanas em Auschwitz, Abraham foi "trabalhar" na Alemanha. Passou por várias "fábricas", que funcionavam ao lado de pequenos campos de concentração. Com o avanço dos aliados, foi sendo levado cada vez mais dentro da Alemanha.
Em 2 de maio de 1945, tropas americanas e russas chegaram ao campo de Ludwiglust. Os nazistas fugiram e Abraham estava livre.
"Não acreditei na liberdade. Senti muita tristeza por tudo que passei e pelos que não tiveram a mesma sorte que eu. A tristeza foi maior que a alegria. Simplesmente chorei", diz Abraham.
Ele pesava então 28 quilos, estava com tuberculose e disenteria. Passou por vários hospitais alemães até 1947, quando emigrou para a então Palestina britânica, depois Israel. Ficou lá até 1954, quando veio morar no Brasil, conheceu sua mulher e criou família (dois filhos e quatro netos).
Trabalhou fabricando móveis de ferro, mas o espectro nazista o seguiu por quase 25 anos. Tinha insônia, pesadelos, suava frio. Só se sentiu melhor quando começou a escrever sobre o que se passara com ele, em 1972. Já escreveu 13 livros e é vice-presidente da Associação Mundial dos Sobreviventes do Nazismo.
Kiwa Kozuchowicz nasceu em Pakanow, uma pequena cidade no centro da Polônia. Após a ocupação alemã, os judeus foram confinados na periferia da cidade.
Em 1942, espalharam folhetos dizendo que os jovens judeus que se apresentassem para ir aos campos de trabalho teriam suas famílias preservadas em Pakanow.
Kozuchowicz, então com 19 anos, se apresentou com o irmão. Soube depois da guerra que as quatro irmãs e os pais foram mandados semanas depois para a morte no campo de Treblinka.
Depois de passar por alguns campos de trabalho escravo e de o irmão ser morto pela SS numa tentativa de fuga, Kozuchowicz chegou a Auschwitz em 1944.
Trabalhou quase um ano seguido, de domingo a domingo, das 7h ao anoitecer, numa fábrica de borracha sintética que funcionava dentro do campo. Quem ficava doente ou não aguentava o trabalho era mandado à câmara de gás. O jeito era trabalhar mesmo doente, tentando esconder o problema.
"Cada um de nós sabia que podia morrer a qualquer momento", diz Kozuchowicz. Com o avanço dos aliados, ele foi transferido para dentro da Alemanha até ser libertado pelos americanos quando era levado a pé para o campo de extermínio de Dachau. Era 25 de abril de 1945. "Quando os americanos apareceram, não acreditamos. Não conseguia nem falar."
Depois de alguns anos trabalhando na Alemanha, Kozuchowicz veio de navio para o Brasil em 1949, atraído por conhecidos que moravam em São Paulo. Ele começou trabalhando como representante de jóias e depois montou sua própria fábrica. Tem dois filhos e cinco netos.
Após a guerra, Kozuchowicz pensava bastante na sua experiência nos campos. Depois quis esquecer. Ficou anos evitando lembrar do ocorrido, nem conversava com os filhos. Até que em 1993 foi chamado pelo amigo Ben Abraham a testemunhar no julgamento de S.E. Castan, que lançou livros no sul do Brasil dizendo que o Holocausto não teria ocorrido.
"Fiquei revoltado em ter que testemunhar contra um canalha que queria renovar o nazismo aqui e negar o que aconteceu na Europa", diz Kozuchowicz. Desde a condenação de Castan por injúria, ele consegue falar mais do que passou. "Acho importante que as pessoas não esqueçam o que aconteceu", diz Kozuchowicz.

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