São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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Vergonha na cara

FÁBIO KONDER COMPARATO

"O assassinato de centenas de jovens nas grandes cidades brasileiras e no meio rural, em muitos casos em circunstâncias que levam a crer no caráter deliberado de extermínio de menores, apresentou, nos últimos anos, uma média anual de mais de 1.500 casos. Na maior parte das situações, as vítimas tinham um perfil típico: adolescente do sexo masculino, de cor negra ou parda, com baixa ou nenhuma escolaridade, sem qualquer tipo de iniciação profissional e submetido, em muitos casos, de forma direta ou indireta, ao crime organizado."
Essa denúncia sobre "faxina social de indesejáveis" não foi extraída de algum boletim ou declaração de ONG (Organização Não-Governamental) à imprensa internacional, mas sim do programa de governo do então candidato à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso ("Mãos à Obra", 1994, pág. 230).
Em novembro de 1994, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), a qual, escusa dizê-lo, não é uma ONG, abriu um processo contra o Brasil para a apuração da negligência ou incapacidade de nossas autoridades em pôr cobro à situação de generalizada violência no sul do Pará.
Uma lista de pessoas marcadas para morrer –todas elas defensores de posseiros– foi oficialmente entregue pelo arcebispo de Belém ao governador do Pará, em 13 de setembro de 1994. A lista foi também entregue ao procurador-geral da República e ao ministro da Justiça, em Brasília, na mesma data.
Até hoje, nenhum mandante de assassinato por conflitos de terra chegou sequer a ser processado criminalmente. E vários dos poucos executores condenados conseguiram escapar da prisão, como ocorreu com os assassinos de Chico Mendes e, mais recentemente, com o assassino denominado Ubiratã, condenado à reclusão em 28 de abril de 1994 e foragido da prisão central de Belém desde 24 de outubro seguinte.
Conforme denúncia apresentada em seminário realizado na Câmara dos Deputados, em agosto de 1994, em apenas seis fazendas do sul do Pará, comprovou-se a existência de 1.531 escravos. Não estão aí incluídos os escravos da fazenda São Felix do Xingu, cujo número –em torno de centenas– não pôde ser precisado.
Pela primeira vez na história da República, as eleições legislativas realizadas em todo um Estado da Federação tiveram de ser anuladas por fraude, largamente patrocinada, como comprovou a Justiça Eleitoral, por organizações de contraventores e traficantes de droga.
Era de se supor que o novo governo federal merecesse o crédito de confiança do povo, declarando, logo nas duas primeiras semanas de exercício de suas funções, qual a política que poria em prática para reverter essa situação humilhante para o nosso país, perante as instâncias internacionais.
Mas não: em vez de enfrentar o crime, o Ministério da Justiça decidiu criar um órgão de informações, "para abastecer as embaixadas brasileiras com informações positivas sobre o Brasil", de modo a evitar o que um diplomata caracterizou como caricatura do nosso país no exterior.
A situação lembra estranhamente o nosso prolongado conflito diplomático com a Inglaterra, na primeira metade do século passado, a respeito do tráfico de escravos africanos.
Por força de tratado celebrado com aquele país, deveríamos ter abolido o tráfico até 1831. Quatorze anos depois, porém, como as nossas autoridades continuavam não só a tolerar o comércio de carne humana, mas em muitos casos a praticá-lo em seus negócios particulares, o Parlamento inglês votou o famoso "bill Aberdeen", que autorizava as belonaves de S. Majestade a apresar navios negreiros brasileiros onde fossem encontrados.
A grita foi imensa. Indignamo-nos contra a violação de nossa soberania e declaramos com a mão no coração –já naquela época– que a honra nacional fora enxovalhada.
Os traficantes de negros, porém, mais astutos e avisados, ao mesmo tempo em que inflamavam a indignação nacional, cuidaram de incrementar rapidamente seu lucrativo contrabando: em 1845 trouxeram para o Brasil 19.453 escravos; cinco anos mais tarde, introduziram mais de 60 mil.
É preciso reconhecer que a nossa classe dirigente manifesta admirável constância. Ela continua a comportar-se, desde a independência, exatamente como os Bourbons de França após a Revolução: nada aprenderam e nada esqueceram.

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