São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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Adorno neles

CAIO TÚLIO COSTA

O tema de redação do vestibular da Fuvest, que seleciona felizardos para estudar na Universidade de São Paulo, provocou escândalo incomum entre os vestibulandos e ganhou amplitude com a intromissão de professores de cursinhos, jornalistas e acadêmicos, incluindo-se aí um ilustre professor de filosofia.
A prova consistia em três afirmações e um desenho, tudo considerado "difícil" pelos palpiteiros. A partir da leitura dos pequenos textos (dois do filósofo alemão Theodor W. Adorno e um do francês Alain Badiou) e da observação de um desenho (do artista norte-americano Andy Warhol) o estudante deveria escrever 30 linhas.
O quadro de Warhol é clássico, aquele da repetição do rosto de Marilyn Monroe. As frases falavam por si. "Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem eu", de Adorno. "Não há sempre o sujeito, ou sujeitos. (...) Digamos que o sujeito é raro, tão raro quanto as verdades", de Badiou. E a última, comprida: "Todos são livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a neutralização histórica da religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa", também de Adorno.
Foi aquela choradeira. Candidato garantindo nunca ter ouvido falar no "tal" Warhol, professor de cursinho reclamando da "complexidade", jornalista analisando a "arrogância". O ponto máximo se deu com a declaração do filósofo José Arthur Giannotti, professor respeitadíssimo. Saiu-se com uma pérola do tamanho do besteirol jornalístico sobre o tema: "Eu precisaria de, no mínimo, três semanas para entregar o texto requerido."
Bobagem. Gianotti não precisa das três semanas e ninguém precisava conhecer previamente os autores para discorrer sobre as proposições. Bastava lê-las com atenção, olhar o quadro e refletir.
A chiadeira retrata a preguiça que tomou conta do sistema educacional brasileiro, somada ao despreparo dos que deveriam se ocupar do seu próprio desenvolvimento. Quem foi que disse, na prova, que era preciso conhecer a obra de Warhol ou de Badiou para discorrer sobre o tema da identidade? Alguém pediu a biografia dos citados? Absolutamente não. O que se queria, claro, era checar a capacidade de raciocínio e de escrita dos alunos face às afirmações propostas.
Querem discutir o sistema do vestibular? Ótimo. Em boa hora, o novo ministro da Educação lançou a proposta de acabar com o próprio e substituí-lo por sistemas de avaliação nos colégios. Dizer que a prova é elitista e que deveria ser mais fácil só porque cita um complexo filosófo alemão é obscurantismo. Repito: nenhum vestibulando precisava conhecer os meandros da dialética negativa para desenvolver algumas linhas sobre o descaramento do "eu" em alguns sujeitos.
É bandalheira intelectual criticar um tema inteligente, que premia a reflexão. Atacá-lo é insistir no bê-á-bá soturno que rege a educação no país.
Os vestibulandos de 1995 jamais vão se esquecer do dia em que toparam com Adorno. Se ao menos um entre eles for em frente e tentar descobrir o que escreveu este homem será o bastante. Um país se faz com homens e livros, reza a frase feita. Não me venham agora as demagógicas autoridades da academia ou da imprensa brecar as poucas luzes acendidas. Adorno só pode fazer bem. E olhe lá: quem criticou leu mal, não entendeu a frase mais comprida de Adorno.

Ilustração: "Marilyn Monroe", de Andy Warhol (1962)

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