São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 1995
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A questão nuclear, outra vez

GIL DA COSTA MARQUES

Provavelmente, nenhuma questão científica teve no Brasil um impacto tão grande quanto a questão do domínio da energia nuclear. O impacto pode ser medido pelo rol de heranças deixado pelos diversos programas nucleares que o Brasil já teve.
A necessidade do domínio da tecnologia nuclear é indiscutível. Desde a prospecção de jazidas de materiais físseis até o seu enriquecimento envolve um ciclo cujo domínio o país persegue desde quando se percebeu o enorme potencial energético propiciado pelo processo de fissão de átomos pesados. A energia nuclear tem usos pacíficos e relevantes nas áreas de geração de energia, na medicina e na agricultura.
Duas demonstrações do enorme poder de gerar energia a partir do núcleo do átomo, em Hiroshima e Nakasaki, fizeram com que os militares passassem a ter um interesse direto pelo desenvolvimento da energia nuclear. Nisso o Brasil simplesmente imitou os demais países desenvolvidos.
Na verdade, o Brasil seguia o exemplo dos precursores da moda, os EUA. Também seguindo o exemplo norte-americano, os diversos programas nucleares envolveram, de um lado, militares e, de outro, cientistas de alta qualificação. Uma parte dos problemas com a energia nuclear remonta, portanto, às suas origens e à sua utilização para fins não-pacíficos.
A imbricação de militares e cientistas deixou um legado para o país, cuja contabilidade, quer seja na coluna dos lucros ou na coluna das perdas, está longe de ter chegado ao fim.
Pode-se contabilizar alguns saldos altamente positivos do legado nuclear. O primeiro saldo positivo foi a criação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), por inspiração do almirante Álvaro Alberto, com o objetivo explícito, em sua fundação em 1951, de desenvolver a energia atômica.
Hoje, o CNPq se firmou como a mais importante agência de fomento da ciência do hemisfério sul e s desvinculou completamente da sua mais importante missão quando de sua formação. Outras instituições relevantes no cenário científico brasileiro surgiram como decorrência do programa nuclear.
O sucesso do programa nuclear autônomo da Marinha do Brasil, atuando em parceria com a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) no Estado de São Paulo, ao lograr êxito em viabilizar um processo de enriquecimento isotópico do urânio, propiciou ao país o domínio de mais uma etapa do ciclo do combustível nuclear.
Do ponto de vista tecnológico, trata-se de uma conquista, como se vê, que o país persegue há mais de 40 anos. Nenhum dos esforços anteriores, e particularmente o ambicioso acordo do Brasil com a Alemanha, foi tão bem-sucedido quanto esse. Igualmente importante foi a consolidação da autonomia, alcançada na década de 70, na produção de radiosótopos para fins médicos e industriais.
Na coluna dos fracassos, pode-se contabilizar o enorme custo social de pelo menos um dos programas nucleares. O Programa Nuclear Brasileiro concebido pelo governo Geisel foi condenado pela comunidade científica como sendo inoportuno, muito caro e destituído de qualquer justificativa no âmbito social.
A construção de usinas nucleares sem esgotarmos os recursos hídricos colocava em xeque a necessidade de geração de energia por essa via. O país gastou bilhões de dólares e, até hoje, não sabe o que fazer com as suas usinas inacabadas.
Para o mal ou para o bem, o país dispõe hoje de uma herança nuclear. Essa herança foi acumulada ao longo dos últimos 50 anos e não é desprezível. Dela fazem parte instituições de grande porte e altamente qualificadas. Como no caso do CNPq, o legado nuclear ainda pode ser muito útil ao Brasil.
Para que isso se dê, basta que deixemos de lado programas por demais ambiciosos, custosos e irrelevantes socialmente. O Brasil deve simplesmente aperfeiçoar, melhorar e colocar à disposição da sociedade seu know-how nuclear.
A idéia do Brasil como uma potência nuclear nunca fez sentido. O Brasil é um país de índole pacífica, não tem problemas de fronteiras a serem resolvidos com os vizinhos nem demandas internacionais e é um país não-intervencionista. A inexistência de justificativas para um programa nuclear com objetivos bélicos exige portanto que o programa nuclear tenha um acompanhamento civil. Trata-se pura e simplesmente da desmilitarização do programa.
Outra providência relevante e urgente no momento é a divisão da CNEN. O problema da CNEN é o fato de que ela exerce um papel duplo e conflitante: tem sob sua responsabilidade não somente o fomento às atividades que envolvem energia nuclear como também é responsável pelas funções de licenciamento e de fiscalização de todos os usos de energia nuclear no Brasil.
As atividades de execução e fiscalização não podem pertencer a um mesmo órgão. Este é um princípio elementar. Esse duplo papel indevido da CNEN tem sido, já há muitos anos, alvo de críticas de entidades representativas da comunidade, tais como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Sociedade Brasileira de Física.
A CNEN deve estar exclusivamente voltada para as funções de fiscalização e licenciamento das atividades nucleares além de criar mecanismos e deter poderes efetivos para exercer as salvaguardas nucleares nacionais.
Parte do atual acervo da CNEN poderia estar vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Este é o caso do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Trata-se de um instituto altamente qualificado e que está em condições de prestar relevantes serviços na área nuclear para fins pacíficos.
Compete assim ao novo governo, sobre o qual a sociedade depositou suas expectativas de transformações, a implementação das mudanças na área nuclear há muito reclamadas pela comunidade científica.

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