São Paulo, quarta-feira, 25 de janeiro de 1995
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Dois salários, um país

Chegou a hora de FHC começar a dar conteúdo concreto às palavras do discurso de posse
PAUL SINGER
Quis o destino que a Câmara dos Deputados e o Senado votassem ao mesmo tempo o reajustamento dos salários do presidente da República, ministros e parlamentares e o aumento do salário mínimo. E pelo que se anuncia, o presidente se apresta a sancionar o primeiro e a vetar o segundo.
Os dados e o bom senso indicam que ele deveria proceder ao contrário: sancionar o novo salário mínimo de R$ 100 e vetar o aumento real dos vencimentos das altas autoridades da República.
A remuneração da chefia do Poder Executivo e dos legisladores deveria ser a necessária para que os ocupantes destes cargos possam exercê-los adequadamente e nada mais.
Não se trata de empregos, cujos salários possam ser determinados em mercados. A paga de governantes e legisladores só pode ter por base a despesa média de quem exerce estas atividades, considerando evidentemente que a maioria deles não traz a família para Brasília, tendo despesa dobrada para a manutenção própria na capital e dos dependentes na cidade de origem.
Pelo que se sabe, todas as demais despesas funcionais, inclusive pagamento de assessores, é coberta por verba pública independente do salário. Pois bem, nenhum dado foi apresentado para mostrar que os atuais salários, de R$ 3.000 a R$ 4.000, das altas autoridades executivas e legislativas sejam insuficientes.
Dada a insistência do governo e seus economistas de que qualquer reajustamento salarial acima do estritamente justificado pela inflação passada seria inflacionário, é inadmissível que a cúpula do próprio governo e do Parlamento se concedam reajustamento de cerca de 125% e mais.
A questão do salário mínimo é igualmente clara. Ele foi achatado e todos os candidatos à Presidência, inclusive o eleito, prometeram recuperá-lo. O veto presidencial ao aumento aprovado de R$ 70 para R$ 100 está sendo justificado pela suposta incapacidade da Previdência e de governos estaduais e municipais pagarem o aumento a aposentados e funcionários.
Ora, quando Fernando Henrique prometeu recuperar o salário mínimo ele já sabia que isso implicaria obter maior contribuição previdenciária e fiscal de empresas ou (preferencialmente) de pessoas físicas de altos rendimentos.
O aumento do salário mínimo não precisa ser inflacionário, basta que a ampliação esperada do consumo dos pobres seja compensada por redução idêntica do consumo supérfluo. Só precisa vontade política de propor e implementar políticas que transfiram renda para quem ganha menos e tirem de quem ganha mais.
O único a apresentar argumentos factuais contra o reajustamento do salário mínimo foi (que eu saiba) Luiz Carlos Mendonça de Barros na Folha de domingo último (pág. 2-4). Infelizmente os dados dele não batem. Afirma que a cesta básica paulistana era 55% maior que o mínimo em fevereiro, antes da implantação da URV e que agora ela está apenas 14% acima do "salário mínimo de R$ 85".
Acontece que o mínimo continua sendo de R$ 70, acrescido de abono de R$ 15 apenas este mês. Considerando os R$ 70, que continuarão valendo se de fato o aumento for vetado, a cesta básica está 38,7% acima do salário mínimo. Além disso, a cesta básica em 28/02/94 era de R$ 95,52, portanto 47,4% (e não 55%) acima do mínimo de então de 64,79 URV. O ganho real do mínimo foi de apenas 6,3% e isso só porque ele foi aumentado para R$ 70 no 2º semestre de 94.
O salário mínimo foi fixado em março de 94 pela média dos preços dos quatro meses anteriores. Nestes meses –11 e 12/93, 1 e 2/94– o valor médio da cesta em URV foi de 85,04, de acordo com o Dieese, entidade que mede diariamente o valor da cesta. O salário mínimo decretado então era tão baixo que permitia comprar apenas 76% da cesta básica. Hoje, com o salário mínimo aumentado para R$ 70, ele permite comprar somente 72% da mesma cesta.
O poder de compra do mínimo diminuiu nos últimos 11 meses. O aumento de 42,9% aprovado no Legislativo permitiria aos que recebem o mínimo adquirir "toda" a cesta básica. E nada mais.
O salário máximo do governo federal (Executivo e Legislativo) e o salário mínimo do trabalhador brasileiro devem ser regidos pelo mesmo princípio: o da satisfação das necessidades de quem o recebe. Se o salário mínimo deve permitir a aquisição de uma cesta de bens e serviços, o salário máximo também deve.
As cestas não deveriam ser iguais, mas deveriam guardar certa relação "moral". Afinal tratam-se de remunerações de servidores do mesmo país. Se o reajustamento do salário máximo for sancionado pelo presidente e o do salário mínimo for vetado, o primeiro será 114 vezes maior que o último. Dentro de um mesmo país, esta diferença abismal entre salários políticos não pode ser justificada.
Em seu discurso de posse, o presidente Fernando Henrique Cardoso disse: "Falta a justiça social. É este o grande desafio do Brasil neste final de século. Será este o objetivo número um do meu governo". Mais adiante acrescentou: "Também nós nos horrorizamos vendo compatriotas nossos e ainda que não fossem brasileiros, vendo seres humanos ao nosso lado subjugados pela fome, pela doença, pela ignorância, pela violência. Isso não pode continuar!" E ainda completou: "Vou governar para todos. Mas, se for preciso acabar com privilégios de poucos, para fazer justiça à imensa maioria dos brasileiros, ninguém duvide, eu estarei ao lado da maioria". Chegou a hora de começar a dar conteúdo concreto a essas palavras. Se não for agora, quando será?

PAUL SINGER, 61, economista, é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Foi secretário do Planejamento do Município de São Paulo (gestão Erundina).

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