São Paulo, quarta-feira, 25 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Por um debate mais elevado

JOSÉ MIGUEL VIVANCO; JAMES CAVALLARO

A defesa dos direitos humanos não é tema do direito interno de cada país
JOSÉ MIGUEL VIVANCO e JAMES CAVALLARO
Em 9 de janeiro, a Folha publicou artigo escrito pelo embaixador do Brasil em Washington (EUA), sr. Paulo Tarso Flecha de Lima, no qual, o autor criticou severamente a Anistia Internacional, a Freedom House e a Human Rights Watch pelos relatórios que as três entidades publicaram em dezembro do ano passado ("Responder é preciso", Folha, 9/01). Nos sentimos no dever de assinalar algumas observações equivocadas feitas pelo embaixador e tentar dirigir o debate para a questão da defesa dos direitos humanos.
Nós teríamos preferido dialogar com o embaixador pessoalmente, possibilitando um debate mais elevado, dirigido à busca de soluções concretas no que diz respeito aos problemas reais que o Brasil enfrenta na promoção e defesa dos direitos humanos.
Apesar de nos acusar de "entranhado preconceito que –por má-fé ou ignorância– contamina, no essencial, as (nossas) avaliações sobre o Brasil", cita só a seguinte frase, retirada do contexto do nosso relatório anual, para comprovar esta afirmação contundente: "(...) as eleições (de 1994) foram conduzidas de forma relativamente livre, (...) depois de uma campanha presidencial repleta de controvérsias e escândalos". Logo depois, o embaixador nos acusa, indiretamente, de termos feito estas afirmações de "uma sala refrigerada em Manhattan".
O que o embaixador omitiu é que nós reconhecemos que as eleições brasileiras representaram um grande "sucesso democrático". Mas, ainda assim, as eleições gerais foram realizadas com certas falhas comprovadas. O reconhecimento público feito pelo então ministro da Fazenda Rubens Ricupero de que ele tinha usado a máquina estatal em favor de um candidato deveria bastar para mostrar as falhas do processo eleitoral.
Mas, além disso, a fraude eleitoral, pelo menos no Rio de Janeiro, chegou a tal extremo que foi preciso realizar novas eleições para deputados federais e estaduais. E houve escândalos.
Além do incidente Ricupero, aconteceram outros envolvendo desde o general Newton Cruz, candidato pelo PSD a governador do Rio até o então candidato a vice-presidente de Lula, senador José Paulo Bisol. Tanto de uma sala "refrigerada em Manhattan" como do Rio de Janeiro, de São Paulo, Brasília ou Pernambuco –lugares onde o representante da Human Rights Watch/Americas esteve durante a campanha– podia-se constatar esses fatos. Até de uma sala refrigerada da Embaixada do Brasil em Washington dava para perceber essas verdades.
No que diz respeito à proteção dos direitos humanos, o local ou a nacionalidade do observador são fatos de pouca importância, o que torna ainda mais preocupantes as acusações feitas pelo embaixador de sermos colonizadores ou antibrasileiros.
Tal como o professor Paulo Sérgio Pinheiro demonstrou no seu artigo em resposta ao embaixador ("Transparência é preciso", Folha, 11/01), a defesa dos direitos humanos já não é tema do direito interno de cada país. Em consequência dos horrores cometidos pelos nazistas, a Assembléia Geral da ONU, sem nenhum voto contra, aprovou no dia 10 de dezembro de 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esse documento abre um novo capítulo na história da humanidade, no qual a pessoa humana tem direitos absolutos e que a defesa deles é matéria da comunidade internacional, das organizações não-governamentais e dos cidadãos do mundo inteiro.
É precisamente esse fato histórico –a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos– que inspira a publicação do relatório anual da Human Rights Watch em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Infelizmente, ainda temos que responder àqueles que teriam preferido que o velho regime internacional no qual cada país tinha o direito de abusar livremente dos seus cidadãos não tivesse sido substituído.
Embora o artigo do embaixador pareça desqualificar nosso relatório, ele não questiona a questão principal nele contida, que em 1994, no "Brasil, continuaram a ocorrer graves violações de direitos humanos que vão desde condições de trabalho que se aproximam de escravidão até assassinatos de crianças e adolescentes por policiais fora de serviço". (Relatório Anual 1995, Human Rights Watch/Americas).
Melhor do que buscar argumentos secundários baseados nas avaliações das eleições brasileiras, o embaixador deveria ter se preocupado com a busca de soluções para estes problemas reais. Como sempre, nós temos o maior interesse em buscar essas soluções, e, estamos abertos ao diálogo com o embaixador caso ele queira assumi-las conosco.
Tal como reconhecemos no nosso relatório, o presidente Fernando Henrique Cardoso tem, sem dúvida, um "compromisso (...) com os valores democráticos", e, ainda mais, há pouco o novo presidente reafirmou que os direitos humanos terão prioridade em sua administração.
É de esperar, então, que as opiniões e atitudes do sr. Paulo Tarso não sejam mais do que isso –simplesmente as opiniões pessoais dele– e não reflexões da política oficial do novo governo. Esperamos que este lamentável debate não prossiga e que a atenção e os esforços do novo governo sejam doravante dirigidos à proteção dos direitos humanos de todos os brasileiros.

JOSÉ MIGUEL VIVANCO, 34, advogado chileno formado pelas universidades do Chile, de Salamanca (Espanha) e de Harvard (EUA), é diretor-executivo da Human Rights Watch/Americas (Washington, EUA).

JAMES CAVALLARO, 32, advogado norte-americano formado pelas universidades de Harvard e de Berkeley (EUA), é representante no Brasil da Human Rights Watch/Americas.

Texto Anterior: Dois salários, um país
Próximo Texto: Ciro Gomes em Harvard; Anistia Internacional; Comunidade de língua portuguesa; Bocejo do papa; Redação da Fuvest; Únicos, mas diferentes; A miséria bate à porta; Por São Paulo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.