São Paulo, sexta-feira, 27 de janeiro de 1995
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Lembranças ainda trazem sofrimentos

ADRIAN BRIDGE
DO "THE INDEPENDENT", EM CRACÓVIA

Os acordes comoventes de uma velha canção folclórica iídiche enchem o ar do modesto apartamento de Renata Zisman em Cracóvia. É uma canção que ela aprendeu quando criança com seu pai e sua mãe, ambos assassinados.
Na parede uma grande foto em preto e branco mostra Zisman aos 30 anos. Ela era uma morena espantosamente bela. Mas, como os acordes que cantam um mundo que acabou para sempre, os olhos da foto transmitem uma tristeza avassaladora.
"Eu queria ter nascido outra pessoa", disse ela, em tons contidos. "Queria que minha vida não tivesse sido tão cheia de tristeza –que eu pudesse ter dado risada de vez em quando."
Como todos os sobreviventes de Auschwitz, Zisman, que tem 70 e poucos anos, ainda sofre. Esta semana marca o 50º aniversário da libertação do campo. Mas nesse tempo ela não passou um dia sem reviver seu horror indescritível.
Frequentemente incapaz de dormir, ela recorda os condenados a morrer e os sádicos espancamentos ministrados pela SS e pelos Kapos, seus capangas prisioneiros. Ela recorda as chamadas de presença às 3h30 da madrugada, os piolhos, seu cabelo raspado, a fome e o medo constante da morte.
No final do verão de 1944, quando as câmaras de gás trabalhavam a todo vapor, Zisman enfrentou uma das abjetas "seleções". Em lugar de serem postas no grupo das mulheres consideradas aptas para trabalhar, ela e sua irmã foram colocadas num grupo a ser enviado às câmaras.
Enquanto esperavam, nuas, as duas irmãs se abraçavam em desespero e choravam. Mas por alguma razão foram poupadas. Mais tarde uma prisioneira mais velha lhes contou que houve um problema com a entrega das cápsulas letais de gás Zyclon B.
"Deus, o destino, o acaso, me salvaram", disse Zisman, que faz parte da minúscula minoria de judeus que sobreviveram a Auschwitz –seus pais morreram em outro campo– e da minoria mais minúscula daqueles que permaneceram na Polônia após a guerra.
Durante o auge do Holocausto, até 20 mil judeus por dia eram mortos nas câmaras de gás. Mesmo operando 24 horas por dia, os crematórios não davam conta dos cadáveres, e muitos eram queimados em piras imensas. O mau cheiro era insuportável.
Quando o Exército Vermelho invadiu Auschwitz, muitos dos vestígios dos extermínios já haviam sido erradicados.
As quatro câmaras de gás e crematórios do complexo de Birkenau haviam sido explodidos. Em alguns galpões parcialmente destruídos as tropas encontraram 43 mil pares de sapatos, sete toneladas de cabelos humanos e quantidades incontáveis de escovas de dentes, óculos e panelas.
A monstruosidade dos crimes geralmente deixa mudos os visitantes ao museu erigido em 1947, mas seu legado sempre foi cercado de controvérsias.
Imediatamente após a guerra, investigadores soviéticos declararam que 4 milhões de pessoas haviam morrido em Auschwitz.
As autoridades polonesas mantiveram esse número até 1989, apesar do fato de pesquisas minuciosas terem indicado que o número era mais próximo de 1,1 milhão.
O que suscitou muito mais controvérsias do que isso foi o fato de o museu negar-se a reconhecer que cerca de 90% dos que morreram foram judeus. As placas e os memoriais se referiam às "vítimas do fascismo", generalizadas, e a ênfase era dada aos prisioneiros poloneses e soviéticos.
Em 1984 surgiu uma disputa feia entre judeus e a Igreja Católica, quando um convento de freiras carmelitas foi aberto ao lado da cerca do campo.
Nove anos depois, só uma intervenção do papa convenceu as freiras a se mudarem –para um novo centro ecumênico católico distante apenas 500 metros.
Quase inacreditavelmente, os planos para as comemorações do 50º aniversário da libertação também deram lugar a disputas e mal-entendidos.
Subjacentes a esta disputa há as alegações de anti-semitismo polonês que vêm sendo feitas há muito tempo por muitos judeus. Os grupos judeus apontam que após a guerra, muitos judeus poloneses que sobreviveram ao Holocausto foram expulsos. Hoje apenas 7.000 judeus vivem na Polônia, contra 3,5 milhões antes da guerra.
Os poloneses acusam os representantes judeus de tentarem reacender disputas antigas e de agir em função de ambição pessoal, e muitos admitem achar que Auschwitz deveria ser visto como mais do que simplesmente um memorial aos judeus mortos.
"Nós também sofremos terrivelmente no campo", disse Tadeusz Zaleski, um sobrevivente polonês que vive em Cracóvia. "Acho errado dizer que Auschwitz é sinônimo do Holocausto. Foi mais complicado do que isso."
Muitos poloneses cristãos vêem Auschwitz como o lugar onde foram assassinados muitos dos membros mais brilhantes de sua sociedade. Dos 150 mil poloneses mantidos prisioneiros em Auschwitz entre 1940 e 1945, 75 mil foram mortos. Também foram mortos 20 mil ciganos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos e 25 mil pessoas de outras nacionalidades.
"Nenhum de nós questiona que outros tenham sofrido", disse Zisman. "Mas ninguém sofreu tanto quanto nós." Esse é o cerne da questão, dizem os grupos judeus.
Zisman reage com revolta à discussão sobre quem vai sentar aonde na cerimônia de hoje. "É inacreditável. Se alguma vez houve um evento que deveria ter sido organizado com calma, dignidade e respeito totais, era este."

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