São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Um ano desigual, mas combinado

MARCELO LEITE

O primeiro mandato de um ano encerrou-se quarta-feira. Na coluna da semana passada fiz uma prévia de balanço, dizendo-me ao mesmo tempo satisfeito e insatisfeito com a perspectiva de um segundo e derradeiro ano no difícil cargo de ombudsman. Vou tentar explicar melhor o paradoxo recorrendo a um conceito de origem marxista, o de desenvolvimento desigual e combinado.
Ele é usado com frequência para descrever o Brasil, mas quem o emprega cuida de omitir seu formulador: Trotski, o revolucionário russo ``démodé". Grosso modo, designa a mistura de desenvolvimento e subdesenvolvimento em muitos países periféricos, nos quais um setor moderno pode conviver com o mais atrasado, este funcionando como freio daquele.
(Quem mora na São Paulo do reengenheiro Paulo Maluf, ou conhece a cidade, sabe do que estou falando. O mesmo vale para o Rio de César ``Factóide" Maia.)
De algum modo, a expressão resume também este primeiro ano de ombudsmanato. De um lado, é um prazer -e um privilégio- poder contribuir de forma direta para fazer da Folha o bom jornal que é, crítico, irrequieto, arrojado. Moderno, no bom sentido. De outro, causa pesar conhecer tão de perto, por força do cargo, os tantos e renitentes defeitos que este diário ainda carrega.
Minha função é antes criticar do que elogiar, mas hoje vou subverter a ordem das coisas. Começo pelos elogios:
A Folha é um jornal mais bem-acabado hoje do que há um ano. Os erros de revisão estão diminuindo, notadamente os de digitação, um esforço que qualquer leitor assíduo pôde perceber nos últimos meses.
No que mais importa, o desempenho jornalístico, também houve avanço. Menos notável, talvez, ou mesmo pouco uniforme, mas é patente que se sedimenta na Redação uma cultura de reportagens de maior fôlego e profundidade. São trabalhos investigativos em sentido mais amplo do que a mera -e muitas vezes fácil- descoberta de escândalos. Os dossiês Tempo Real das edições de domingo representam o centro de gravidade dessa transformação.
Salvo alguns percalços, a resposta dos jornalistas da Folha à ação do ombudsman -melhor dizendo, sua atenção para com demandas dos leitores- é satisfatória. De um total de 8.551 pessoas atendidas no ano (veja quadro com estatísticas), apenas 76 se encontram sem solução (menos de 1%). O tempo de resposta também pode ser considerado bom: entre o registro da queixa e o envio de uma carta do ombudsman ao leitor, transcorreram em média 7,8 dias, nesse ano que passou.
No limiar do sétimo ano da experiência ombudsman, e de posse dessas informações, é fácil perceber que a obrigação de prestar contas ao público -ao cliente, diriam os apóstolos da qualidade total- é algo há muito enraizado na Folha, muito antes de tornar-se moda. Cada vez menos um constrangimento imposto pela direção e mais um elemento da rotina da Redação.

Outro lado
Agora, a face menos moderna do ``maior jornal do hemisfério":
Os erros de português estão caindo, mas ainda se cometem alguns gravíssimos. Um exemplo recente: no subtítulo da reportagem principal do caderno Folhateen saiu escrito ``disperdiçam", com esse ``i" abominável na primeira sílaba, falha tanto mais grave por ocorrer em um suplemento lido por milhares de jovens já suficientemente vitimados por um ensino para lá de deficiente.
A quantidade de erros de informação ainda é inaceitável. Desde o último domingo, foram publicados 34 erramos, uma taxa de quase 5 por dia. Um deles, da quarta-feira, era duplamente revoltante, por ter sido publicado mais de seis meses depois de cometidos os erros e por sua ridícula concentração:
``Diferentemente do que foi publicado à pág. 1-14 (Brasil) da edição de 19/3, a Segunda Guerra Mundial começou em 1939, os EUA entraram na guerra em 1941, a Guerra dos Seis Dias foi em 1967, o presidente Richard Nixon (EUA) renunciou em 1974, Margaret Thatcher assumiu o poder no Reino Unido em 1979, o Muro de Berlim caiu em 1989, e o Iraque invadiu o Kuait em 1990".
Em muitas reportagens, o jornalismo crítico que a Folha se propõe praticar ainda é ficção. O leitor terá notado ao longo do ano, nestas colunas, a frequência com que reclamo do jornal -e de seus concorrentes- maior desconfiança com relação às fontes, sobretudo as do governo e as que se acobertam sob o ``off" (falam sob a condição de não serem citadas). Muito pouco do jogo de interesses que sempre está por trás dos famosos ``vazamentos" chega ao conhecimento do leitor, e isso também é uma maneira de sonegar-lhe informação. Para não falar dos casos em que a ``revelação" é manifestamente inconsistente, como a recente lorota dos sem-terra senderistas.
Como toda média, a do tempo de resposta mencionada acima esconde muita coisa. De um lado, ela é puxada para baixo pelos inúmeros casos de solução imediata para o ombudsman, como o reenvio de uma carta para o Painel do Leitor. Nestes casos, o tempo de resposta é zero. Por outro lado, algumas demoras escandalosas forçam-na para cima, como a do colunista que consumiu quase oito meses para apreciar o protesto de um leitor. Pode até ser uma exceção, mas para a pessoa atingida não é justificativa alguma.

Trotski e Sísifo
Este é o espírito da coisa. Estou sendo pago, nestes dois anos, justamente para garantir que nenhum leitor que procura o ombudsman fique sem resposta.
Consegui isso em mais de 99% dos casos, mas só com a ajuda de uma legião de colegas. Peço licença para homenageá-los na pessoa de duas mulheres de fibra: Eleonora de Lucena, secretária de Redação, que se desincumbe com enormes competência e ``fair play" da atribuição nada invejável de obter respostas dos muitos editores sob seu comando; e Rosangela, minha secretária, inestimável.
Pensando bem, aquela idéia de Trotski nem vem tão a calhar. Afinal, se aceitei renovar o contrato foi por estar convencido, 365 dias depois de ter cometido essa imprudência pela primeira vez, de que tudo de arcaico e defeituoso que há na Folha não pesa como uma condenação, mas só como um desafio. Gigantesco como a rocha suportada por Sísifo, mas só um desafio.
Ombudsman e Redação continuarão a enfrentá-lo com armas e pesos desiguais, mas era isso mesmo que estava combinado.

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