São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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A grande praga

ROBERTO CAMPOS

"A experiência é uma escola muito cara, mas é só nela que os tolos aprendem."
(Benjamin Franklin)

"Todos falhamos, socialistas e conservadores, direita e esquerda, na solução do problema do desemprego. Ninguém pode atirar a primeira pedra". Foi o que disse, com voz comovida, François Mitterrand, como candidato à reeleição para presidente da França, em 1988, num debate pré-eleitoral com Jacques Chirac.
O problema se agravou desde então e a França apresentava, ao fim do governo socialista, o maior índice de desemprego da OCDE, superado apenas pelo da Espanha.
Mas é escasso o consolo para os não-socialistas. Se é verdade que o reaganismo logrou manter relativamente baixa a taxa de desemprego nos Estados Unidos, o thatcherismo, na Inglaterra, convive com elevado desemprego. E, o que é pior, a vitória do livre mercado sobre o socialismo, assim como a globalização dos mercados, não trouxeram alívio para a grande praga do desemprego.
No socialismo marxista, naturalmente, não se falava em desemprego. Mas era uma falsa solução. Grandes massas eram empregadas improdutivamente na burocracia, na polícia e nas Forças Armadas; não havia livre movimento de pessoas e escolha de profissões; se o padrão de vida médio (fora da "nomenklatura") baixou a tal ponto que um desempregado na Europa Ocidental, graças ao "welfare state", vivia bem melhor que a média dos empregados nos regimes socialistas. Tanto assim que o inferno capitalista da Europa Ocidental tinha que se defender de hordas de fugitivos do paraíso socialista...
O paradoxo do desemprego em meio a um capitalismo relativamente próspero não encontra fácil explicação. Não devia ser assim. Pois, vitoriosos o livre mercado e a globalização financeira, várias coisas favoráveis ocorreram: aumentou dramaticamente a produtividade; com a integração de mercados, abrandaram-se os choques desfavoráveis de oferta; e a desmassificação da indústria, em virtude da revolução tecnológica, reduziu o poder dos sindicatos de desempregar gente pelo irrealismo das reivindicações.
Há quem defenda a tese de que esses fatores mudaram tanto os fundamentos da economia que o medo da inflação se tornou uma psicose obsoleta. A economia mundial, argumenta-se, poderia crescer mais se os governos não tivessem adquirido "medo do crescimento", apegando-se demasiadamente a métodos e preconceitos monetaristas em relação à inflação.
É uma versão mais sofisticada das teses estruturalistas, que tantas desgraças trouxeram à América Latina nos anos 50 a 70. Segundo estas, a inflação resultaria não da expansão monetária e sim da rigidez das estruturas, de forma que reformas estruturais, e não a prudência monetária e fiscal, seriam o remédio.
A versão mais moderna dá uma guinada em direção oposta: a revolução tecnológica e a concorrência tornaram as economias tão mais flexíveis que se reduziram os constrangimentos tradicionais à oferta de bens e serviços. Nessas condições, um pouco de inflação seria apenas um lubrificante, sem perigo de acelerações inflacionárias descontroladas. E os governos poderiam e deveriam ser mais expansionistas, tanto mais quanto a taxa média de inflação nos sete países mais industrializados caiu para apenas 2,5% ao ano, a menor dos últimos 30 anos...
O problema é que a inflação é uma serpente apenas adormecida. E é perigosa a tentação de volta ao ativismo governamental pregado pelo keynesianismo. Este, desde as décadas de 70 e 80, vinha cedendo espaço ao liberalismo, precisamente porque as teorias de sintonia fina da demanda agregada fracassaram no combate à inflação, gerando um monstro até então desconhecido: a estagflação.
Não faltam bodes expiatórios para explicar o excruciante problema do desemprego, que na Europa assume proporções muito mais sérias que nos EUA e no Japão.
A explicação favorita (e falsa) dos protecionistas europeus é que uma das causas principais é a competição comercial dos países de baixo salário, particularmente os asiáticos.
Outra é o efeito tecnológico; a automação e a robotização, deslanchadas pela revolução telemática, causariam uma espécie de desemprego estrutural, pelo descompasso entre o treinamento tradicional de mão-de-obra e as exigências das sociedades informatizadas.
Uma terceira é que, possuídos de uma psicose inflacionária, os governos, assoberbados por déficits, vêm optando por baixo crescimento; e, o que é pior, utilizam para financiar esses déficits políticas de juros altos para vender seus títulos.
Uma quarta explicação são os exageros do "welfare state"; a combinação européia de salários rígidos e crescentes benefícios sociais resultaria num salário "real" superior ao crescimento de produtividade.
Todas essas explicações contém alguma validade, mas nenhuma é completamente satisfatória. É válido argumentar, por exemplo, que a maior flexibilidade de salários, contratações e despedidas nos Estados Unidos resultou em menor desemprego (apesar do influxo de imigrantes) que na Europa.
Entretanto, a tese dos juros reais altos dificilmente explicaria a elevação recente do desemprego japonês, já que a taxa de redesconto no Japão baixou ao incrível nível de 0,5% ao ano! O fenômeno tem mais a ver com a sobrevalorização cambial do iene, simultaneamente a um colapso do mercado imobiliário e uma crise bancária.
Nesse ambiente de perplexidade, surgem algumas idéias de ousada originalidade, tais como as do último relatório da UNCTAD (Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento).
Trata-se de uma espécie de sindicato dos subdesenvolvidos, que prega inutilmente há tempos o ideário de uma "nova ordem econômica internacional". Sem relevância prática porque, mesmo dentro da atual "desordem internacional", os tigres asiáticos lograram saldos cambiais e rápido crescimento. Isso indica que o sucesso pode ser alcançado por políticas internas corretas, independentemente do protecionismo e da avareza dos países ricos nos programas de ajuda externa.
Na visão da UNCTAD, o grande vilão seria o mercado internacional de títulos, que desviou para a especulação financeira globalizada o capital que deveria ser destinado a investimentos na formação de capital na economia real. Isso teria resultado numa espiral viciosa. A medrosa taxa de crescimento gerou alto desemprego, agravando os déficits dos sistemas assistenciais dos governos.
A elevação da dívida pública, por sua vez, fez inchar o mercado de títulos, possibilitando aos gnomos financeiros exigir juros altos para rolagem da dívida governamental. Nesse contexto de mercado financeiro globalizado, os governos (bancos centrais e Tesouro) teriam perdido a capacidade de fazer políticas monetárias e fiscais.
As receitas da UNCTAD constituiriam uma espécie de superkeynesianismo, com dupla receita: 1) um imposto cobrado de uma só vez sobre as gorduras do capital financeiro, a fim de reduzir as dívidas dos governos, restando-lhes a capacidade de fazer políticas monetárias e fiscais e de financiar a infra-estrutura, e 2) um imposto sobre transações financeiras internacionais, para refrear a volatilidade dos capitais e impedir flutuações violentas nas taxas de juros.
Essas receitas configuram uma espécie de dirigismo escapista para habilitar os governos a escapar dos rigores do mercado global, que pune rápida e severamente os malcomportados.
São mínimas as possibilidades de aceitação do receituário. O mundo vai ter que aprender dolorosamente, ao ingressar na sociedade do conhecimento, a difícil arte de absorver a eficiência da revolução telemática sem tornar permanente a praga do desemprego...

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