São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Em busca do dissenso perdido

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi nos anos 90 deste "curto século 20" de Hobsbawm que a língua inglesa redefiniu pela quarta vez -depois da Segunda Guerra Mundial- a fatia mais moderna da América Latina. Primeiro, foram as academias, que, apoiadas nas expectativas otimistas das novas teorias do desenvolvimento, classificaram o continente de forma genérica, na categoria dos developing countries (países em desenvolvimento).
Depois foram as organizações internacionais, que reclassificaram, sobretudo o Brasil e o México -os dois países latino-americanos que responderam com sucesso à verdadeira crise do modelo de substituição de importações ocorrida nos anos 60-, na categoria dos new industrialized countries (países recentemente industrializados). Nos anos 80, durante a longa e penosa renegociação da dívida externa que dizimou a economia continental, os bancos credores transformaram-nos, por meio da imprensa, em um conjunto de debts countries (países endividados). Mas foi na primeira metade dos anos 90 que as bolsas de valores eliminaram do "nosso conceito" a idéia de país, ao incluir a fatia bem comportada do continente no distinguido grupo mundial dos emerging markets (mercados emergentes).
Essa última redefinição inglesa de nossa identidade ocorreu na mesma época em que, segundo o ``Financial Times", uma revolução intelectual ocorrida no continente latino-americano permitira aos economistas locais vencerem as tradicionais resistências dos "populistas" e dos "corporativistas" e conceber uma nova safra de planos de estabilização, cujo sucesso imediato seria resultado da combinação eficaz de algum tipo de âncora cambial e de uma rigorosa política fiscal e monetária com a implementação simultânea do conhecido tripé do reformismo liberal: desregulação, abertura econômica e privatizações.
Como, nesse caso, ao contrário das experiências anteriores, a rápida desaceleração das taxas de inflação viesse acompanhada do crescimento do consumo e do produto interno, voltou-se a falar em todo o continente num novo "milagre econômico". E, de imediato, generalizou-se a convicção de que fora este milagre que elevara a América Latina à categoria de mercado emergente, revertendo o curso até então desfavorável do fluxo internacional dos capitais.
Hipótese aparentemente confirmada pelo fato de que a afluência líquida de capital para a América Latina, que chegara a algo próximo a 6% do seu PIB em 1981 e reduzira-se a algo próximo a 0% entre 1983 e 1990, voltou a ser de 4% em 1991 e 6% do seu PIB total em 1993 e 1994. Sendo que, no caso considerado como o mais bem sucedido do novo milagre, este ingresso de capitais chegou a mais de 8% do PIB, logo antes que o México fosse aceito como membro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e do Nafta.
Essa é hoje, indiscutivelmente, a visão dos fatos hegemônica nos meios acadêmicos latino-americanos. E sua repetição incessante através dos meios de comunicação de massa a transformou em parte indissociável do senso comum retratado pelos estudos de opinião pública. Uma convicção tão generalizada, até recentemente, que esvaziou o debate político-partidário, dizimando as oposições e criando a impressão da existência de um consenso sem precedentes.
Uma "revolução intelectual" que avança sustentada na idéia de que "não existe outra alternativa" e na evidência aparente de que o novo milagre tem ocorrido de forma idêntica em vários países, a despeito de que suas economias e seus governos sejam completamente diferentes entre si.
Como se nós estivéssemos assistindo na América Latina à definitiva comprovação de uma "verdade econômica" capaz de derrotar a "irracionalidade político-ideológica "e diluir a importância das especificidades histórico-institucionais de cada país, comprovando, ao mesmo tempo, a eficácia das "novas idéias" que Paul Krugman sintetizou, recentemente, numa fórmula muito feliz: ``Pode-se resumir, de modo simples, este consenso, pelo menos na forma em que ele tem influenciado as crenças dos mercados e dos governos. É a crença de que a virtude vitoriana em política econômica -mercados livres e dinheiro saudável (free markets and sound money)- é a chave para o desenvolvimento econômico" (``Foreign Affairs", julho/agosto de 1995, pág. 29).

A bolha especulativa
Não é improvável, entretanto, que muito em breve esta história venha a ser recontada de outra forma, sobretudo depois que estas certezas começaram a ser questionadas por conta da inesperada crise financeira mexicana. De repente, tudo ficou um pouco menos simples, quando, em poucas horas, se desfez o prestígio intelectual e moral dos technopols mexicanos, e seus festejados dirigentes foram jogados no exílio ou no esquecimento. Mas, ao mesmo tempo, ao explicitar-se a importância da nova política monetária restritiva adotada pelos Estados Unidos no início de 1994, no desencadeamento da crise, pôde-se também compreender o papel estratégico que a política monetária anterior havia tido para a construção do sucesso econômico mexicano dos anos 90-94.
Surgia ali a primeira sombra de dúvida capaz de ameaçar o consenso estabelecido sobre a natureza dos novos milagres. E começava a ficar mais visível qual fora o papel do próprio consenso na reprodução fictícia do milagre. De maneira que até um economista liberal e fiel ao mainstream, como Paul Krugman, pôde afirmar sem constrangimento, depois do México, que "o reinado de cinco anos do Consenso de Washington pode ser proveitosamente analisado como uma espécie de bolha especulativa" e concluir, de forma ainda mais dura, que "a liberalização comercial e outros movimentos no sentido de liberalizar os mercados são quase que certamente coisas boas, mas a idéia de que eles vão gerar uma disparada de crescimentos representa uma esperança, mais do que uma expectativa bem embasada" e, portanto, "o ponto importante a respeito desses argumentos favoráveis à liberalização comercial como forma de obtenção de grandes ganhos, entretanto, é que eles são claramente especulativos; não se pode dizer, como questão de princípio, que o protecionismo por si só desencoraje o crescimento" (idem, págs. 32/35).
Esta nova visão do ``sucesso" latino-americano, entretanto, permanece ainda ofuscada pela força aplastada dos governos e dos meios de comunicação de massa, que seguem praticando ou publicitando ``a sabedoria convencional do momento", de que nos fala Krugman. E por isto os meios intelectuais ou acadêmicos seguem sem resposta às perguntas sobre a surpreendente universalidade do milagre e sobre suas íntimas relações com o desaparecimento do dissenso intelectual e político nos países em que ocorreu.

O círculo quadrado
Como pode haver sido que, num continente tão heterogêneo e desigual como a América Latina, qualquer governo ou presidente da República tenha alcançado, nestes mesmos anos da década de 90, de forma igualmente rápida e indolor, o mesmo tipo de sucesso macroeconômico, independentemente das diferenças estruturais entre seus países e das convicções político-ideológicas de seus dirigentes?
Pois a verdade é que presidentes inteligentes ou medíocres, corruptos ou bem comportados, sustentados por partidos autoritários ou democráticos, apoiados em burocracias próprias ou em consultores internacionais, governando países produtores de cocaína, café ou automóveis, acabaram obtendo resultados muito parecidos, o que se constitui em algo absolutamente novo e extraordinário. Em todos os casos, o sucesso inicial foi estrondoso e seguiu a mesma ordem cronológica: as altas taxas de inflação foram reduzidas rapidamente e isto foi obtido ao mesmo tempo em que se produzia um crescimento imediato e simultâneo da produção e do consumo.
Nesta direção, aliás, o exemplo mais interessante ou exótico talvez não seja o dos países mais conhecidos e comentados, mas o do sucesso obtido por um engenheiro japonês sem partido, que conseguiu fazer a inflação peruana cair de 7.650% ao ano, em 1990, para 15%, em 1994. No mesmo ano em que o PIB peruano cresceu 12,7% e o mesmo japonês reelegeu-se por ampla maioria, depois de haver dado um golpe de Estado, e a despeito da catástrofe econômica e social que define a realidade nacional peruana.
Um verdadeiro caso de vitória e felicidade macroeconômica em todos os sentidos da expressão! Aparentemente, o Peru também teria resolvido, como a Bolívia, o México, a Argentina e, finalmente, o próprio Brasil, a incógnita ou "círculo quadrado" da estabilização com crescimento, acompanhado a um só tempo pela expansão do consumo, dos ganhos financeiros, dos votos e da miséria.
Será tão difícil de explicar por que um continente, que foi tão desigual na era desenvolvimentista, ficou tão igual durante os anos 90, de maneira que os recentes sucessos econômicos pudessem ser obra, indiferentemente, de um gângster como de um sociólogo ilustrado? Nem tanto, se não nos deixarmos cegar pela paixão ou pelos interesses.

A moeda indolor
O caminho para encontrar esta resposta começa por outra pergunta: se os novos planos de estabilização não contêm em si mesmos nenhuma grande novidade, repropondo medidas que já foram experimentadas sem êxito em outras ocasiões, por que só agora obtiveram sucesso e não encontraram maiores resistências?

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