São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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A paixão violenta

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Existe um mistério em torno de René Char (1907-1988). Sua vida e sua obra combinam o que pode haver ao mesmo tempo de mais violentamente concreto e incompreensivelmente etéreo. Um homem que lutou contra o nazismo, foi amigo íntimo de Heidegger, amava as mulheres e acreditava em fantasmas.
Considerado um dos maiores poetas franceses do século, desconhecido no Brasil, Char foi o homem de ação por excelência, a começar por seu engajamento na resistência durante a Ocupação, e ao mesmo tempo um poeta que tende em alguns de seus livros mais célebres para um hermetismo radical, uma poesia que João Cabral definiu como ``uma luta fantasma, vazia, contra nada".
É na tentativa de ajudar a compreender a dificuldade dessa obra que a viúva do poeta, Marie-Claude Char, e o historiador Paul Veyne conceberam um espetáculo de leituras dos poemas, protagonizado por Michel Piccoli e Dominique Blanc, e pontuado por intervenções sobre a vida de Char feitas pelo próprio Veyne, um dos principais historiadores europeus da atualidade e que foi amigo do poeta.
O espetáculo será apresentado em São Paulo, nos próximos dias 7 e 8, no Teatro Ruth Escobar, dentro do 5º Festival Internacional de Artes Cênicas. No dia 5, com promoção da Folha, da editora Iluminuras e do festival, será lançada a primeira antologia do poeta no Brasil: ``O Nu Perdido e Outros Poemas" (Iluminuras), em edição bilíngue e tradução de Augusto Contador Borges. Durante o evento haverá um debate com os participantes do espetáculo e o tradutor. Leia a seguir, entrevista concedida à Folha por Paul Veyne.

Folha - Como começou seu interesse pela obra de Char e sua amizade com o poeta?
Paul Veyne - Da maneira mais simples. Houve três episódios. Quando era adolescente, quando tinha 18 anos, li como todo mundo a poesia de Char, que em 1945 era considerada na França uma coisa sensacional, pelos pintores, pelos escritores etc. Tive a impressão imediata de um texto genial que ficaria para a posteridade. Quando terminei meus estudos, com 25 anos, fiz o que fazem muitos estudantes: marquei um encontro e fui vê-lo. Por um ano, mais ou menos, nós nos mantivemos em contato. Depois, eu tinha meu trabalho, e nós nos perdemos de vista. Mas nunca deixei de ler e reler sua obra, que eu admirava muito. O acaso fez com que, em torno de 1980, eu fosse morar num vilarejo que fica ao lado de onde vivia Char. Nesse momento, pensei que seria faltar com os meus deveres não aproveitar a ocasião para revê-lo e escrever um livro sobre ele.
Folha - É um livro biográfico ou sobre a poesia?
Veyne - É um livro de 700 páginas. Chama-se ``René Char et Ses Poèmes". Há apenas um capítulo biográfico, um perfil do homem. Trata-se sobretudo de comentários aos textos.
Folha - O sr. disse que desde o primeiro instante teve a impressão de estar diante de uma obra de gênio. Por quê? Qual é a originalidade dessa poesia?
Veyne - Uma combinação raríssima de uma potência que se equipara, para citar os poetas franceses, à de Victor Hugo e Baudelaire, e uma espécie de graça, de harmonia e música, que é a essência da poesia. Mas também por uma questão de gosto pessoal; gosto muito de uma poesia à maneira de Gongora.
Folha - Há um grande poeta brasileiro, João Cabral de Melo Neto, que escreveu um pequeno poema chamado ``Anti-Char", em que critica a poesia dele, a idéia de um poema que não diz nada, que ronda o vazio, que não comunica diretamente. Como o sr. vê essa crítica?
Veyne - É verdade que existem sempre duas tendências na poesia, uma concepção um pouco sagrada, onde a obscuridade domina, e uma concepção bem mais carnal. O que me impressiona em Char não é o lado esotérico e mallarmaico, que me deixa um pouco indiferente, mas a violência com que falou de coisas que nos apaixonam e que são tanto místicas como políticas (falo da resistência antinazista na França) e também amorosas. É o lado político e carnal dessa poesia que me atraiu violentamente.
A poesia que chamamos de hermética é um pouco como os sonhos. Há sonhos que não entendemos, mas que nos deixam obcecados, por serem violentamente sensuais ou constituídos por uma paixão violenta. A poesia de Char tem esse efeito de sonho, de poesia onírica, carregada de uma paixão violenta, seja política ou sensual ou religiosa, onde o lado hermético serve apenas para tornar tudo mais solene, como a missa em latim.
Folha - Alguns críticos dizem que Char tentou fundir poesia e natureza, como se quisesse reproduzir o mistério da natureza com seus poemas herméticos.
Veyne - Substituir o mundo por um livro? Não. De jeito nenhum. Seria mais o contrário. Era um homem com convicções muito fortes, que queria exprimir essas convicções, mesmo se fosse sob uma forma um pouco onírica e obscura. Um homem que prezava muito as suas convicções e que um dia me disse uma coisa decisiva: que a poesia e as palavras falam fatalmente de alguma coisa, que uma poesia é melhor se ela diz a verdade, se tem consequências práticas, por exemplo, e mesmo políticas. Um grande poema, para ele, é aquele que diz a verdade, por exemplo, sobre as circunstâncias trágicas do nazismo, e que com isso produzirá um grande efeito em certos homens que o lerem. Posso dizer que, no que me diz respeito, em circunstâncias políticas dramáticas na França, como a guerra da Argélia, tive alguns aborrecimentos contra o governo e a poesia de Char me serviu como fonte de convicção.
Folha - O sr. foi muito próximo de Michel Foucault, que por sua vez era um admirador de Char. O que havia em comum entre Char e Foucault?
Veyne - Unicamente uma coisa negativa. Foucault e Char não acreditavam nem em Marx nem em Freud. Já isso cria uma espécie de modernidade ou pós-modernidade onde as pessoas se entendem. Havia também uma outra coisa que não tem nada a ver com as doutrinas, mas com o gosto literário. Foucault gostava da poesia de René Char da mesma forma que gostava da pintura de Manet. Além disso, Foucault estava convencido de que a grande e verdadeira literatura na França era constituída por coisas como Char e não como Sartre. Não levava a literatura existencialista a sério. Admirava Beckett. Havia os que admiravam Sartre e os que admiravam Char e Beckett. Eram duas escolas opostas. Mas isso não tem a ver com as idéias ou doutrinas. Era simplesmente uma questão de gosto.
Folha - No que se refere ao espetáculo que será apresentado no Brasil, que tipo de intervenções o sr. faz?
Veyne - O espetáculo dura uma hora e meia. Faço uma introdução de alguns minutos e em seguida deixo Michel Piccoli e Dominique Blanc falarem. Depois, entro duas ou três vezes no palco para distrair o público, contando algumas anedotas. Por exemplo: há histórias da resistência e de mulheres, ao mesmo tempo ele acreditava em fantasmas; são coisas engraçadas que vou contar no palco, interrompendo por cinco minutos a leitura de Piccoli.
Folha - O sr. é um historiador da Roma Antiga, mas escreveu recentemente um livro autobiográfico. Como se deu essa passagem?
Veyne - Não sei como é nos outros continentes, mas na França, agora, as pessoas vivem fazendo entrevistas, pedindo aos outros que contem suas vidas. O que fiz foi responder às perguntas de uma entrevistadora. Metade do livro é escrita em forma autobiográfica; a outra metade é de perguntas e respostas. A pesquisa histórica é uma parte da cultura e por outro lado pressupõe que nos interessemos pelo que são os homens em geral, as paixões humanas, os sentimentos, e as civilizações e sociedades de outros povos. Tomo um exemplo bem simples: um historiador de Roma, que conhece as revoltas escravocratas, Spartacus etc., só pode se interessar pelo que aconteceu no Brasil com a história inverossímil de Canudos, de pessoas numa cidade sitiada por dois anos, sob uma espécie de mensagem mística. Para compreender a história de um único povo, como os romanos, é preciso ter uma cultura que lhe ensine como são os homens em geral.
Por exemplo, fico fascinado com a atual substituição progressiva do catolicismo por seitas protestantes na América Latina. Se nos interessamos pelo início do cristianismo, se tentamos entender por que ele se impôs, é importante examinar quais são os fenômenos de conversão religiosa em todo o mundo. A história romana é como uma fechadura. Quanto mais chaves você possui, mais coisas tem a abrir. E as chaves você pode encontrar no Brasil, na França, na Idade Média, no século 20.
Folha - Por que o sr. fica particularmente fascinado por essa questão das seitas protestantes na América Latina?
Veyne - É um simples detalhe. Vemos como uma religião que se estabelecia como um dogma universal é pouco a pouco rejeitada por um fenômeno muito curioso, que é um paganismo, um fenômeno de seitas. Ao contrário, o cristianismo fez o movimento inverso: uma religião universal que rejeitou o paganismo. Essa história de religião universal contra as seitas é muito curiosa.
Folha - O sr. tem hipóteses sobre a razão para isso ocorrer agora na América Latina?
Veyne - Não. Nenhuma. A tentação é de ligar isso à história social, o que tentamos fazer por um século, mas sem alcançar qualquer resultado. Tenho a impressão de que não sabemos nada, que são processos que ``pegam" ou não, como a moda. Quando as pessoas que fazem a moda se perguntam: ``O que vamos fazer este ano, saias curtas ou compridas?", elas tentam prever o que vai ``pegar" e o que não vai. Por vezes, ``pega", se muitas mulheres começam a usar saias curtas e as outras as imitam, e por vezes não ``pega". Não dá para saber como as coisas ``pegam". Mas não creio que sejam fenômenos de sociedade, de razão etc. Tenho a impressão de que são muito mais aleatórios.
Folha - O sr. diz que se tentou compreender esses fenômenos, inutilmente, pelas ciências sociais. O sr. acredita que as ciências humanas estejam perdendo o interesse e a importância que tinham até recentemente?
Veyne - Não. Acho que estão passando por uma mutação considerável. Mas diria que são o futuro. Quando você diz ``cultura", pode entender por isso o fato de ter lido Horácio, ou qualquer outro, ou o fato de compreender algo do mundo em que vivemos. Para mim, a cultura se dá quando o maior número de pessoas compreende alguma coisa do mundo onde elas vivem. As ciências humanas têm por finalidade lhes abrir os olhos, fazê-las compreender alguma coisa. Isso não quer dizer que informem sobre a verdade; não creio que sejam como as ciências exatas, mas enriquecem a compreensão. Só de falar da oposição entre uma seita e uma religião dominante, já compreendemos alguma coisa.
Folha - O sr. diz que as ciências humanas estão mudando. Qual é o futuro da história, por exemplo?
Veyne - Ela se tornará uma tipologia sociológica. Ou seja, não tentará encontrar leis, dizendo que a humanidade é dirigida pela luta de classes ou pelo eterno retorno etc., mas distinguirá cada vez mais tipos diferentes, um pouco como as pessoas que descrevem os animais, vertebrados, invertebrados etc. As religiões universalistas, as seitas... Vai distinguir cada vez mais as variedades. De forma que as coisas poderão ser mais precisamente detectadas. Do tipo: ``Aquilo que vemos ali é um caso um pouco diferente. Não é o mesmo animal". É ver de uma maneira cada vez mais precisa e afinada. Por exemplo: quando começamos a fazer a história da pintura, passamos a distinguir o que todas as mulheres sabem quase desde o berço: os matizes das cores, as combinações, para se vestir. Um homem que não tem o costume de usar vestidos como uma mulher aprende os matizes das cores ao aprender a história da pintura. A história é isso: ver os matizes dos acontecimentos.
Folha - Voltando a Char, como o sr. vê o futuro de uma poesia hermética como a dele e mesmo da verdadeira literatura em geral, num mundo cada vez mais audiovisual?
Veyne - Uma literatura considerável e especificamente americana se desenvolveu na América do Sul recentemente. Ao mesmo tempo, na Europa, nos últimos 40 anos, à exceção de casos raros, como Beckett e René Char, a literatura está em pane, ela não tem o vigor criativo, a invenção e a originalidade do que foi produzido no seu continente. Se tomássemos apenas a literatura, poderíamos concluir que há um declínio da velha Europa. Por outro lado, há um domínio que prova que não houve declínio, mas deslocamento: é a extraordinária fecundidade do cinema. As grandes obras da segunda metade do século 20 não são, na Europa, as obras literárias, mas aquelas realizadas pelos grandes cineastas. Alguém como Bergman é de estatura shakespeariana. Também Fellini. Há um simples deslocamento de terreno. Houve épocas em que se escreveram epopéias, houve épocas em que se escreveram romances e houve épocas em que não se escreveu nada, mas fez-se música. Neste momento, na Europa, fazemos cinema.

O LANÇAMENTO
O lançamento da antologia de René Char acontece no próximo dia 5, quinta-feira, a partir das 19h, na sala Dina Sfat do Teatro Ruth Escobar (r. dos Ingleses, 209, Bela Vista, São Paulo). A entrada é franca. A sala dispõe de 400 lugares.

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