São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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A lógica simbólica do Carnaval

LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já é lugar comum dizer que no Brasil tudo acaba em samba. Em especial o Carnaval, essa gigantesca festa popular, que, desde os anos 30, se constituiu em uma espécie de ícone da nacionalidade brasileira e dessa posição careceu não perder mais o lugar.
Boa parte das análises teóricas, no entanto, tem se contentado em entendê-lo como um fenômeno de ordem singular -trata-se de ``O Carnaval"-, esquecendo-se que a cultura é dinâmica e transforma-se não só temporalmente, como é resignificada a partir de diferentes situações. Altera-se, portanto no e em contexto. Se isso tudo faz sentido, a consequência é reconhecer, em primeiro lugar, que falar em um carnaval, apenas, é esquecer a riqueza de sua transformação e o diálogo que se estabelece entre carnavais diversos, como os de Recife, Bahia e Rio de Janeiro. "Outros tempos, outros carnavais".
Por outro lado, fiel à noção de que a cultura carregaria sempre uma razão prática, esse tipo de teoria buscou "desconstruir rituais", como se o exclusivo estabelecimento de uma origem ou de uma determinada condição levasse a entender e a quase desconsiderar qualquer fenômeno cultural, para além de seu contexto político. Com relação ao carnaval carioca, por exemplo, a descoberta da -indiscutível- atuação dos bicheiros junto às escolas de samba, impediria ou tornaria nula qualquer tentativa de compreensão do carnaval local como um grandioso ritual, em que a cultura mais uma vez trapaceia e remexe com a realidade.
Herdeira de uma visão romântica, esse tipo de concepção, muito difundida entre nós, tendeu a definir cultura popular como o local da expressão da mais pura autenticidade; autenticidade esta constantemente ameaçada pela degradação das tradições e pela força de um capitalismo avassalador.
Essa postura carrega, porém, contradições fundamentais. Supõe, em primeiro lugar, a existência de culturas homogêneas e "não conspurcadas" por influências externas, quando sabemos que a cultura é sempre diversa, já que sua lógica está colada à própria comunicação. Por outro lado, essa postura "do original" levaria a um desapontamento crônico, já que tudo que é comercializado ou influenciado por valores mais recentes seria sinônimo da falta, de ausência de tradição, de cópia desautorizada.
No entanto, se qualquer forma de conhecimento supõe mediação, conclui-se que o acesso ao intocado é uma busca do impossível. Essa é sobretudo uma falsa questão, que leva a uma visão essencialista de cultura, que oblitera a própria lógica da dinâmica cultural. Comunicar é sempre selecionar, reinterpretar, lembrar um pouco, esquecer muito.
E justamente contra esse tipo de reificação que se dirige ``Carnaval: dos Bastidores ao Desfile", de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Originalmente escrito como tese de doutorado, esse livro acompanha de perto -de muito perto- o ciclo anual da confecção do desfile carnavalesco de 1992, junto à escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, sediada na zona oeste do Rio de Janeiro.
Apesar de reconhecer a ligação histórica e concreta entre o jogo do bicho e o carnaval carioca, Maria Laura opta por deter-se menos nas fronteiras entre os grupos e classes envolvidas nesse mesmo jogo, mas antes nas mediações existentes entre eles. Sem deixar de perceber conflitos, a autora enfoca os processos culturais que cruzam fronteiras e enfatiza a noção antropológica de ritual: seu caráter sintético, consciente e repetitivo, que lhe confere uma capacidade reveladora dos conflitos que permeiam as sociedades.
Realizando uma etnografia clássica, no melhor dos sentidos, a autora recupera o dia-a-dia das escolas de samba, recobrindo seus mais variados espaços: da feitura das fantasias à elaboração das alegorias; da seleção do tema e do samba à clivagem dos passistas e dos artistas; da equipe de costura à lógica das alas e dos destaques. Enfim, o livro é quase uma radiografia dessa empreitada, na qual nada é aleatório, apesar do tempo tão curto em que passa o desfile. Entre o tempo da avenida e o tempo arrastado do cotidiano, assistimos ao descortinar dessa rotina que parece ser o outro lado do brilho do sambódromo; um lugar de mediação e decodificação de várias visões de mundo.
Diante de um material tão rico, talvez seja hora de insistir, ainda mais, na lógica simbólica e cultural desse tipo de ritual. O contexto político se modificou, muitos bicheiros estão atrás das grades, mas uma certa estrutura do Carnaval permanece. "Entre a absorção e a expressão dos conflitos", como diz Maria Laura, nesse encontro entre "o que foi e o que é, resta entender como o Carnaval é um produto, que responde ao contexto (uma forma mediatizada da cidade conversar consigo mesma), mas como é também produção. Produção de valores e de concepções; diálogo contínuo entre referências do presente e categorias do passado.
Investir nas pistas que a autora nos deixa implica procurar entender um fenômeno desse porte não só numa perspectiva diacrônica, como também sincrônica. Sem voltar a uma noção reificada, seria inquietante olhar para o caráter ao mesmo tempo plural e comum dos vários carnavais brasileiros; recuperar seu caráter contextual, mas também uma certa estrutura que lhe é anterior.
Adentrando o Carnaval pela porta dos fundos, talvez seja possível perceber, assim como fez Lévi-Strauss com relação à estrutura dos mitos, como os diversos carnavais se falam não só em nós, mas por meio de nós e muito entre si. Carnavalizar a realidade seria, dessa maneira, uma forma privilegiada de se aproximar não só da festa, como de refletir sobre que país é esse.

LILIA K. MORITZ SCHWARCZ é professora de antropologia na USP, autora de "Retrato em Branco e Negro" e "O Espetáculo das Raças", ambos pela Companhia das Letras

A OBRA
Carnaval Carioca: dos Bastidores ao Desfile, de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. 240 págs. MinC/Funarte e Editora da UFRJ (av. Pasteur, 250, sala 106, Rio de Janeiro, CEP 22995-900, tel. 021/295-1595). R$ 17,00

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