São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Estratégias da hostilidade

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Guilherme 9º, duque da Aquitânia (1071-1127), celebrado como "o primeiro trovador", é autor de algumas das melhores expressões do amor cortês, aquele amor que faz o elogio excessivo da dama. O poeta sofre por uma "senhora" distante, que não se entrega a ele. Esse amor o enobrece. Contudo, esse grão-senhor, além de tão belas canções de amor, escreveu outras, obscenas, zombando da mulher como infiel ou reduzindo-a a objeto sexual. Os historiadores da literatura costumam, por isso, dizer que, em sua vida, houve um recorte, uma "conversão", fazendo-o passar da juventude dissoluta à maturidade cortês.
Ora, uma das inúmeras teses com que Howard Bloch nos brinda em seu livro sobre as origens cristãs e medievais da hostilidade à mulher (da "misoginia") é exatamente essa: nada prova que tenha havido tal conversão. Ela não passa de um estratagema biográfico para resolver uma contradição de Guilherme. Bloch, aliás, vai mais longe. Afirma que essa contradição está na base de todo elogio excessivo à mulher, ou seja, da retórica da mulher idolatrada, seja ela a virgem, seja ela a dama do amor cortês.
Assim, ao contrário do que se pensa, a exaltação da mulher inatingível -tão frequente na Idade Média- não se opõe ao desdém ou à aversão pela mulher. O que parece à primeira vista uma contradição não passa, diz Bloch, de um paradoxo, mas que constitui uma representação da mulher que vem dos padres da Igreja, passa pela Idade Média e chega, perto de nós, ao amor romântico.
A originalidade do autor, aliás, está em mostrar que esses traços aparecem em obras das mais diversas, pertencendo a gêneros que a tradição distingue e mesmo opõe: por exemplo, o louvor à Virgem Maria e a exaltação da dama distante, ou a celebração da moça virgem e o poema obsceno medieval.
Talvez o mais notável nessas obras sejam alguns paradoxos de base. Por exemplo, é praxe apresentar a mulher como insuportável de tão faladeira. Isso constitui um gênero, o dos "males do casamento", advertindo os homens para os riscos do convívio feminino. Ora, anota Bloch, os poemas que dizem que nada satisfaz a esposa tagarela são, eles próprios, longos, infindáveis: tagarelas.
Mas isso não é uma contradição. O que menos deseja Bloch é denunciar o machismo nessa sua forma básica, a misoginia, por uma contradição lógica. Quer mostrar como funciona uma complexa desqualificação da mulher, que, por ricochete, também desqualifica o homem e, especialmente, o escritor medieval que a efetua.
O mesmo se nota naqueles contos -que todos conhecemos em alguma versão-, nos quais a dama difícil cede ao apaixonado, mas exige dele que conserve o segredo de seus amores. É óbvio que, por alguma razão, ele acaba contando, e o final é trágico, indo desde a simples perda do amor até a perdição da amada e de si mesmo.
É óbvio também que o poeta conta a história para ensinar uma moral, a da discrição amorosa. Só que, nota Bloch, fazendo isso, o poeta pratica a mesma indiscrição que condena. Paradoxos mais ou menos fatais sustentam, assim, a narração moral das relações entre os sexos (ou gêneros) na Idade Média.
Mas essa análise não se detém no período medieval. Na verdade, começando pelos primeiros filósofos cristãos e mostrando como chamam o positivo (por exemplo, o Ser) de masculino, e de feminino aquilo que é precário ou mesmo negativo, Bloch critica o modo como o Ocidente concebeu o que os americanos chamam de relações entre os gêneros -evitando usar o termo "sexos", porque este constituiria o homem e a mulher como duas naturezas.
Pois a tese de Bloch -uma crítica delicada, porém firme, a uma série de leituras feministas- é que elas mesmas acabam caindo na armadilha de dar, à mulher, uma natureza. Apenas invertem aquela natureza que os misóginos lhes davam (de serem tagarelas, superficiais, levianas), passando a celebrá-las em termos positivos inflados. Mas ficam no mesmo molde, que, em última análise, é o do eterno feminino.
Ora, conclui o autor, toda atribuição à mulher de uma natureza significa negar-lhe a presença na história. O decisivo é a história, espaço da ação dos homens (e mulheres). Daí que seja preciso ajustar contas com esse modelo da mulher inatingível, virgem ou Virgem, que acaba sendo projetada na distância e na inação.
Tanto faz, em suma, o desdém quanto o elogio excessivo e, no limite, tanto faz a aversão ou a exaltação: sempre que se fala em "a Mulher" e se esquecem "as mulheres", elas são excluídas da história. Mas, se as queremos (ou se elas se querem) agindo como sujeitos históricos e políticos, é preciso acabar com o discurso da natureza feminina -o que Bloch tenta fazer mediante uma análise primorosa do próprio discurso.
"Misoginia Medieval" é assim uma obra original, baseada na melhor erudição, mas engajada (seu feminismo será mais radical do que o daquelas autoras que delicadamente, quase de forma implícita, critica). É raro termos um livro assim capaz de lidar com a história da filosofia e da literatura, usando mesmo da linguagem técnica, mas que, fazendo isso, discute o nosso tempo, o nosso agir. Talvez seja isto o que se deve chamar de filosofia, no caso, ética.

A OBRA
Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico, de R. Howard Bloch. Tradução de Cláudia Moraes. 280 págs. Editora 34 (r. Jardim Botânico, 635, sala 603, Rio de Janeiro, CEP 22470-050, tel. 021/239-5346). R$ 24,00

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