São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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O vírus perde o fôlego

JAIRO BOUER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Resultados preliminares de uma droga inédita contra o vírus HIV -o MK-639- e o lançamento, no Brasil, de um medicamento -a estavudina- no mês passado apontam para perspectivas animadoras no tratamento da Aids.
A estavudina, ou d4T (do laboratório Bristol-Myers Squibb), é o novo integrante da família dos medicamentos que inibem uma enzima essencial para a reprodução do vírus -a transcriptase reversa.
O AZT (zidovudina), o ddC (zalcitabina) e o ddI (didanosina), usados para o tratamento da Aids há vários anos, fazem parte do mesmo grupo de medicamentos.
Mas o MK-639 (do laboratório Merck Sharp Dome) inaugura uma linha original de drogas antivirais, que inibe uma enzima do HIV responsável pelo ``amadurecimento" do vírus -a protease.
O HIV é um vírus que tem apenas RNA em sua estrutura. O RNA é o material genético responsável pela fabricação de proteínas.
Para que o HIV possa se multiplicar, o RNA precisa ser transformado em DNA (material genético que controla todos os processos biológicos dos seres vivos).
A transcriptase reversa é a enzima que viabiliza essa transformação. O DNA ``fabricado" é, então, agregado ao material genético da célula invadida e passa a comandar a produção de novos RNAs e proteínas do vírus.
Sem transcriptase reversa, o vírus não consegue se proliferar. Bloquear a ação dessa enzima foi o primeiro passo na tentativa de controlar a infecção pelo HIV.
Todas as drogas disponíveis hoje no mercado para o tratamento da Aids atuam nesse ponto do ciclo de vida do vírus. São chamadas inibidores competitivos da transcriptase reversa.
Ricardo Tapajós, infectologista do Hospital das Clínicas da USP e do Hospital Albert Einstein, explica que essas drogas funcionam como um ``elo falso" na fita de DNA que está sendo montada dentro da célula invadida.
Esse elo impede que a sequência correta do DNA do vírus seja completada. Sem DNA, o ciclo de vida do HIV fica bloqueado. A droga seria perfeita e possibilitaria o controle da doença, não fossem dois graves empecilhos.
O primeiro é a toxicidade. Alguns pacientes podem desenvolver efeitos colaterais que inviabilizam a continuidade do tratamento.
O mais grave é a mielotoxicidade -espécie de ``bloqueio" na atividade da medula óssea-, que diminui, drasticamente, sua produção de glóbulos brancos (células de defesa) e glóbulos vermelhos (transportadoras de oxigênio).
O segundo problema é o desenvolvimento de resistência do vírus ao medicamento. Todos os inibidores da transcriptase reversa deixam, invariavelmente, de fazer efeito em um intervalo de tempo que vai de 6 a 18 meses.
Isso acontece por causa da grande variabilidade genética do HIV, que acaba fazendo com que algumas linhagens resistam às pressões seletivas impostas pelas drogas. Com algum tempo de tratamento, as linhagens resistentes se proliferam, e a doença avança.
Segundo Tapajós, os recursos que os médicos vêm utilizando para tentar driblar a toxicidade da droga e a resistência do vírus são a troca do medicamento e a associação de duas drogas simultaneamente. No entanto, as opções ainda são bastante limitadas.
A associação de dois inibidores da transcriptase reversa consegue diminuir os efeitos tóxicos das drogas (já que as doses utilizadas são menores), mas acaba sendo ``vencida" pela resistência do vírus em alguns meses.
A partir desse ponto, os pesquisadores concluíram que só a descoberta de novos medicamentos poderia oferecer alternativas para os pacientes. O d4T, lançado há um ano nos Estados Unidos, que até o mês passado só estava disponível para brasileiros por meio de importação, foi desenvolvido com esse objetivo.
O infectologista Gerald Friedland, da Faculdade de Medicina da Universidade Yale (EUA), explica que o d4T parece ter efeitos colaterais menos tóxicos e menos graves que o AZT.
A validade do uso do remédio isoladamente é questionada por muitos médicos. Na prática, ele vem sendo empregado em associação com o AZT. Segundo Friedland, estudos controlados demonstraram que a combinação entre as duas drogas apresenta efeito superior à ação isolada do AZT.
O 3TC (lamivudina) é outro inibidor da transcriptase reversa em fase avançada de estudos, que deve ser lançado nos EUA até o início de 96. Ele também parece ser mais eficaz quando usado em associação com o AZT.

Inibidores da Protease
Mas a grande guinada na busca de novas alternativas para o combate ao HIV são os chamados inibidores da protease -enzima do vírus que não havia sido nem ``incomodada" pelos medicamentos disponíveis no mercado.
O vírus HIV brota da célula invadida como um vírion (estrutura desorganizada e sem poder de infecção). Para invadir novas células, ele deve ``amadurecer". Aí é que entra a protease.
A mudança na acidez (pH) no ambiente fora da célula ativa essa enzima, que passa a cortar e organizar as proteínas do vírion, conferindo a ele o poder de infecção.
O mecanismo de ação das novas drogas é o bloqueio dessa enzima. Sem a protease, o vírion não se transforma em vírus, as células de defesa deixam de ser invadidas, e o ciclo é interrompido.
Resultados preliminares do maior estudo terapêutico de uma droga antiviral já realizado no Brasil sugerem que o MK-639 tem poucos efeitos colaterais, exerce controle efetivo sobre a atividade do vírus e proporciona rápida recuperação da imunidade.
Mas os especialistas que coordenam o estudo, que deve atingir 900 voluntários até março de 96, na Escola Paulista de Medicina, USP, Unicamp e Hospital Emílio Ribas, estão cautelosos.
Para Luis Henrique Barbosa Borges, do Núcleo de Atendimento ao Paciente HIV/Aids do Hospital das Clínicas da USP, essas drogas -ainda recentes- precisam ser testadas em um número maior de pacientes, e seus efeitos devem se provar duradouros.
Além do MK-639, o Saquinavir (do laboratório Roche) e o ABT-538 (do laboratório Abbot), representantes da mesma classe de medicamentos estão em fase avançada de estudo. O Saquinavir pode ser lançado já em 96.
Os inibidores da protease devem dar mais fôlego à luta contra a resistência viral. A associação de duas drogas que atuam em pontos diferentes do ciclo de vida do vírus (uma bloqueadora de protease e uma inibidora da transcriptase reversa) pode ter efeitos superiores à combinação de dois medicamentos do mesmo tipo.

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