São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Os novos inocentes

``Kids" traz dinâmica do encontro com a pureza e a sua perda

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

``Kids" não é mais um filme sobre a juventude, nem mesmo o melhor ou o mais ousado de uma longa linhagem inaugurada por ``Juventude Transviada". É uma dessas raras obras de arte cuja potência atinge em cheio nossa percepção e afeta doído nossa sensibilidade; por isso mesmo, vai provocar reações polêmicas, extremadas, de aceitação e rejeição.
O filme é impactante. Numa primeira impressão, pelo tratamento aparentemente escandaloso e amoral com que aborda o cotidiano dos jovens, ou por seu olhar supostamente niilista e demolidor; mas, quando descartamos o preconceito e o conceito, isto é, quando conseguimos superar nossa moral e filosofia e tentamos ir mais fundo, abrindo os olhos, descobrimos ou redescobrimos a inocência.
A inocência é o que a câmera de Larry Clark quer captar e mostrar -a inocência que na sociedade contemporânea vai manifestar-se de modo paradoxal e absurdo na eclosão do sexo, da droga, da transgressão e da violência gratuita. ``Kids" registra a inocência e sua perda, esse processo de transformação que se dá uma única vez, na passagem da adolescência para a idade adulta. Clark tinha a pretensão de fazer um filme definitivo sobre a juventude e conseguiu, precisamente por levar o espectador a passar da inocência à perda.
Quando nos damos conta do que realmente está acontecendo, as primeiras perguntas que surgem são: ``Como pôde o diretor filmar a inocência? Como, já tendo-a perdido, pôde encontrar a conexão perfeita que permitisse trazê-la à tela?". As respostas que encontro vão todas numa direção: só uma busca do tempo perdido da adolescência, no tempo por vir da criação, pode revelar o tempo redescoberto. ``Kids" é a revelação da inocência no tempo presente, de uma inocência cujas imagens são apanhadas entre a inocência perdida e a inocência por inventar. Muito além, portanto, do dilema entre realidade e ficção, entre documentário e drama.
"Acho que todo o meu trabalho tem sido como que cinemático, e toda a minha vida foi uma preparação para fazer este filme. Na verdade, até diria que meu primeiro filme, `Kids', está estruturado do mesmo modo que meu primeiro livro, `Tulsa': uma abordagem direta, cronológica, um quadro abarcando um tempo fixo.
O comentário do diretor, reproduzido no ``press-release" que promove o filme, soa franco: basta folhear um de seus livros para constatarmos que quase tudo já estava posto em seu trabalho fotográfico anterior: a mesma busca, a mesma interrogação orientando o olhar, a mesma câmera ágil, tremendamente objetiva e, no entanto, lírica. A atividade fotográfica converge para esse filme porque Clark parece estar se preparando, há muito tempo, para tornar visível a dinâmica de uma inocência que se oferece no exato momento em que se perde para sempre.

"O criminoso, como o artista, é um explorador da sociedade". A frase de McLuhan, publicada no livro de Clark, ``Die perfekte Kindheit" (A Infância Perfeita), pode servir como porta de entrada para o filme. Pregada no mural do fotógrafo com tantos outros fragmentos e imagens, à vista, ela com certeza contribuiu para que sua preocupação se tornasse cinematograficamente consistente. Pois, explorando com intimidade e em profundidade o universo dos jovens e adolescentes, Clark nos faz ver que sua inocência se expressa como falta de vínculos com a realidade que os cerca, como alheamento das armadilhas que a vida pode lhes proporcionar, como total despreparo, enfim.
Desconhecendo limites, e literalmente desamparados, os garotos canalizam sua enorme energia para a única atividade que a sociedade ensinou-os a valorizar: a realização do prazer. Telly, Casper, Ruby, Paul, Dorsey e todos os outros são inocentes e inocentemente descompromissados. Nem selvagens nem libertinos, não são criminosos, depravados, revoltados ou vadios -tudo o que querem é curtir ``numa nice" e satisfazer seus desejos. É assim que concebem as transas, as viagens, o skate, os pequenos crimes, a agressão, os clubs, as festas.
Todos são inocentes. Até mesmo Telly, o don Juan de nosso tempo. É interessantíssimo que ele esteja ficando viciado em virgens, que pense em sodomizá-las e que por trás de seu sorriso cândido desponte um quase-estuprador. É interessantíssimo porque, agora, o que don Juan mais deseja é apropriar-se da pureza de suas vítimas, e não de sua honra, a exemplo do que ocorreu com o don Juan de Tirso de Molina. Como se agora só fosse possível afirmar plenamente a virilidade por meio do roubo e da posse momentânea da pureza, que, uma vez consumados, já relançam o impulso ao encalço de uma nova aventura. "Se você é o primeiro, é o homem" -diz Telly, que mais tarde vai justificar para Casper sua atração por Dorsey nos seguintes termos: "Ela é tão inocente e bonita. (...) Naquele momento era a visão da perfeição. Ela representa tudo de sagrado numa virgem".
Todos são inocentes... salvo Jenny, que vai perder a pureza e ser desenganada. Jenny é o vetor por meio do qual vai se dar a perda da inocência. A mais tímida, a mais pura das garotas -aquela que só transou uma vez e vai fazer o teste soropositivo apenas para acompanhar a amiga- cai na real. Até então o espectador compartilhava com as meninas e os meninos seus entusiasmos pelas descobertas sexuais e chegara a achar engraçado um deles dizer: "Essa é a coisa toda. Dizem que isso é sexo, dizem isso e aquilo. Que heroína mata. Isso aí é invenção. Não conheço ninguém com Aids. Sacam? Não conheço ninguém que tenha morrido dessa merda". Mas agora o espectador passa a ter uma visão dupla. Por um lado, continua acompanhando a garotada em suas aprontações; por outro, sua visão está contaminada pela agonia de Jenny, que foi tocada pela morte e sai à procura de Telly.
Estirado entre as duas visões contraditórias e complementares, o espectador começa a dar-se conta que a força de ``Kids" se desenvolve nessa tensão e no olhar compassivo com o qual Clark abarca os dois níveis de realidade em que os meninos passam a se mover. O efeito de tal realização é poderoso porque vemos o filme precipitar-se numa dimensão trágica, na qual Jenny, Telly, Dorsey e Casper são prisioneiros de um destino que desenrola e corta suas vidas, sem que eles tenham a menor idéia do que está acontecendo.
A imagem, pura e direta como a vida dos jovens que retrata, torna perceptível a transparência do mal que os ameaça em sua vitalidade e em suas próprias vidas. E não é um acaso se os afetos que afloram no rosto e no corpo de uma Jenny drogada involuntariamente e torturada pela aflição evocam as imagens patéticas de Falconetti, no filme ``Joana d'Arc" (1928) de Dreyer: lá, como aqui, a inocência é transfigurada pela perda; lá, como aqui, a dolorosa superioridade dos que sabem imprime a sua marca e comove o espectador; lá, como aqui, o mundo se transforma num inferno já incompreensível ou sem sentido.

``Kids" torna-se um filme decisivo sobre a Aids quando Clark tenta fazer os adolescentes sentirem que, à perda da pureza e da inocência sexual, pode mesclar-se a perda da própria vida. Clark quer tirar deles, com a inocência sexual, a inocência quanto à sociedade e ao mundo em que vivem. Mas, simultaneamente, o diretor nos permite entender porque fracassam todas as campanhas contra a Aids, em todos os lugares: concebidas por adultos que habitam uma outra galáxia, sua linguagem nem é sintonizada pelos jovens.
A Aids, porém, é apenas o ponto de desencontro mais dramático. Voltados para suas tribos, há muito os jovens perderam o contato com as gerações que os precederam, sem que, no entanto, possam ser responsabilizados por seu isolamento. Nesse sentido, o grande escândalo de ``Kids" não é o comportamento da meninada, mas sim o descomparecimento dos adultos, a falência de laços familiares afetivos, a monstruosa irresponsabilidade da sociedade que os põe no mundo e lava as mãos -aliás, laconicamente assinalada nas imagens da garotinha que passa os dias com sua boneca negra, na porta de casa.
O objetivo primeiro de Clark não é, evidentemente, criticar a sociedade; seu filme, porém, comporta uma das mais perturbadoras análises societais que o cinema já realizou, e só a hipocrisia espalhafatosa e bem-orquestrada dos bem-pensantes poderá encobrir a grande ferida que ficou exposta.

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