São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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O fotógrafo e o skatista

AMY TAUBIN
DO ``VILLAGE VOICE"

Larry Clark é conhecido por suas fotos de adolescentes, nas quais fetichiza o glamour frágil de corpos jovens que anseiam pelo esquecimento. Seu ponto de vista, insistentemente voyeurístico, nos obriga a um incômodo confronto com nosso próprio fascínio, desejo e identificação. O que mais incomoda no trabalho de Clark é que, por serem tão jovens, seus sujeitos são extremamente vulneráveis. A grandeza de seu trabalho é que ele chama atenção à sexualidade teen, ou pelo menos à sexualidade dos teens garotos. Não se envolve numa conversa educada a respeito, mas a coloca ali, diretamente à nossa frente.
``Eu sempre quis fazer o grande filme teen americano", diz Clark. ``O tipo de filme que é realmente imediato, como `Shadows' (1960), de John Cassavetes, mas em 94. Não queria fazer um documentário. Queria fazer um filme que pudesse ser exibido em shoppings pelo país afora".
Larry Clark é um homem sério e reflexivo de 52 anos, com um jeito ligeiramente militar (foi recrutado e enviado ao Vietnã nos anos 60). Tem voz grave e fala ligeiramente arrastada. Seu rosto é magro e marcado, seu cabelo puxado para trás num rabo.
``Tulsa", o primeiro livro de Clark, foi fotografado entre 1963 e 1971 e publicado em 71. Imediatamente firmou sua reputação de ``o olhar mais brutal do período", nas palavras de Vince Aletti. ``Tulsa" é o olhar de um insider lançado sobre a cultura teen e drogas do Oklahoma (rapazes com agulhas enfiadas no braço e seus pintos pendurados para fora, jovens com armas, uma ou duas mulheres aqui e ali para dar o tom). Apesar do tom intimista, ``Tulsa" é expresso estritamente na terceira pessoa. Não existe interação direta entre o sujeito e a câmera, nada do intercâmbio eu/você que eletriza ``Teenage Lust" (Desejo Adolescente) -o segundo livro de Clark, lançado 13 anos mais tarde- e os dez anos seguintes de seu trabalho.
``Eu quis que meu primeiro filme fosse como meu primeiro livro -uma narrativa direta, filmada em estilo documental."
No início dos anos 80 ele começou a pensar seriamente em fazer um filme sobre a experiência teen, mas nenhum dos materiais com os quais trabalhou deu certo. A idéia de fazer ``Kids" surgiu no verão de 92, quando fotografava skatistas em Washington Square Park. ``Aquele verão ficou para mim como o verão das camisinhas. Quando eu ia ao parque havia gente distribuindo camisinhas, e a moçada vivia falando em sexo seguro e camisinhas e eu acreditei, eles me convenceram. Mas depois de uns seis meses eles já tinham me aceito como um deles, se abriram completamente, e eu descobri que ninguém usava camisinha. Para eles, sexo seguro é transar com uma virgem."
``Então pensei, bem, eu sempre quis fazer o grande filme sobre os teens americanos. Por que não fazer sobre o que está rolando hoje. E, quando as pessoas me perguntam que lição devem tirar do filme, eu digo que elas devem tentar olhar seus filhos no olho e conversar com eles diretamente. Eu sou pai, mas sei que os pais não têm a menor idéia do que acontece com seus filhos. Eles se esquecem de como era a vida quando eles mesmos eram adolescentes."
Daqui a dez anos, quando as pessoas assistirem ``Kids", acho que o que mais chamará a atenção será o desempenho dos kids: seu ritmo de comportamento, sua energia contagiante. Os kids de ``Kids" não se parecem muito com os ídolos teens do cinema, de James Dean a River Phoenix. São mais impulsivos do que introspectivos. São teens de 17 e 18 anos que fazem o papel de teens de 14 ou 16 -o que é muito diferente de ter pessoas de 23 fazendo o papel de teens de 16.
Mas como Clark conseguiu fazer teens que não são atores profissionais representarem com tanta naturalidade? ``Conhecia-os super bem e eles confiavam em mim, então conseguiam relaxar e concordavam em seguir o roteiro."
Em sua pré-estréia em Sundance, em janeiro passado, o filme provocou furor. Vários críticos, incluindo esta que vos fala, declararam que era extraordinário; mas houve na platéia quem odiasse o filme. Alguns meses mais tarde, o diretor Paul Schrader fez uma entrevista inteligente e positiva com Clark para a ``Artforum". E então começaram os desmentidos.
``Kids" é uma história acauteladora sobre sexo adolescente na era da Aids. Vinte anos atrás teríamos rotulado a conexão que estabelece entre sexo e morte como romântica, ou puritana. Hoje, essa conexão é uma realidade. E talvez seja por isso que Clark teve que esperar até agora para fazer o filme. O importante é que ``Kids" revela os adolescentes como seres sexuais numa cultura que luta para lhes negar sua sexualidade.
Por isso, reclamar que a mídia está exagerando a importância de ``Kids", como fez Caryn James em matéria recente no ``The New York Times", é ridículo. Ela se mostra surpreendentemente obtusa ao desmerecer o filme. James afirma que ``Kids" oferece ``um retrato exagerado de um problema real, que não procura analisar" e que ``seu aspecto menos realístico é que os personagens vivem em um mundo onde não há pais à vista". Não sei que espécie de análise ela esperava assistir. Me parece óbvio que o problema dos kids consiste precisamente no fato de que seus pais se fizeram invisíveis para eles.
O fato de o conselho MPAA de classificação de censura de obras classificar ``Kids" como NC-17 prova que ele nega responsabilidade aos adolescentes, que têm perfeitas condições de decidir se este filme é ou não representativo deles. (A idéia que o MPAA faz de um filme PG-13 é ``Mad Love", em que os ídolos teen Drew Barrymore e Chris O'Donnell fazem o papel de amantes fugitivos que compartilham um quarto onde não há camisinhas à vista. A lógica parece ser que mostrar o ato sexual explicitamente seria mais prejudicial aos espectadores adolescentes do que implicitamente promover o sexo não seguro).
A outra resposta à acusação de que ``Kids" é sobre homens de meia idade (Larry Clark, o produtor executivo Gus Van Sant, os distribuidores Harvey e Bob Weinstein) projetando suas fantasias sobre garotos adolescentes é que ``Kids" é um filme de Harmony Korine, tanto quanto é de Larry Clark.
Harmony e Clark se conheceram há uns três anos. Ele ainda parece adolescente -mais como um garoto de 16 anos do que como um cara de 22, sua idade real. Eles se conheceram quando Larry Clark fotograva skatistas. Harmony foi um skatista para valer por cinco ou seis anos. Ele contou a Clark sobre um roteiro de 35 páginas que havia escrito, a história de um garoto cujo pai o levou para sair com uma prostituta quando fez 13 anos. Harmony enviou o roteiro a Clark.
Meses mais tarde, Clark perguntou se ele gostaria de escrever o roteiro de um filme sobre skatistas. Ele disse a Harmony que queria que o filme fosse sobre um teen para quem sexo seguro consiste em só transar com virgens, e que o filme teria que ter alguma coisa sobre o HIV. Harmony escreveu o roteiro em três semanas para provar a si mesmo que era capaz de fazê-lo. Enquanto escrevia, ia mostrando algumas páginas a Clark. Depois de concluído, diz ele, Clark nunca lhe pediu para modificar nada. O roteiro que entrou em pré-produção é exatamente aquele que está na tela.
Depois de concluir ``Kids" Harmony escreveu dois outros roteiros: ``Ken Park", que será dirigido por Clark, e ``Gummo", que ele mesmo vai dirigir. Clark conta que ``Ken Park" é sobre a interação entre teens e seus pais. E ``Gummo" -bem, Harmony prefere não falar sobre ``Gummo" até ficar pronto. Cary Woods pretende começar a produzir ``Gummo" neste outono, com orçamento de mais ou menos US$ 1 milhão.
Entre as coisas de que Harmony gosta figuram os irmãos Marx, the Shaggs, Linda Manz, ``Tristam Shandy", ``Alemanha Nove Zero/90", de Godard.
Harmony Korine e Larry Clarke são personalidades radicalmente diferentes, mas têm algumas coisas em comum. Nenhum dos dois é nova-iorquino nato, mas Nova York é parte integrante de seus trabalhos. Ambos cresceram em famílias em que a câmera era uma ferramenta profissional. A mãe de Clark era fotógrafa de bebês. O pai de Korine fazia documentários.
Inveterado compilador de inventários, Harmony redigiu uma lista de mais de 1.000 filmes sobre jovens em processo de amadurecimento. Alguns de seus favoritos são ``O.C. & Stiggs", ``Portrait of a Young Girl...", de Chantal Akerman, ``Christine", de Alan Clarke, ``Pixote", ``Los Olvidados". Nenhum deles, entretanto, é o grande filme teen. ``Acho que esse ainda não foi feito". ``Não seria `Kids'?", pergunto. ``Não", diz Harmony, pé no chão. ``Talvez seja preciso fazer uma trilogia."

Tradução de CLARA ALLAIN

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