São Paulo, quarta-feira, 4 de outubro de 1995
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Imobiliárias prometem vida nova

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Li que a construção civil passa por sua maior crise em dez anos: que os lançamentos de prédios novos não estão vendendo nada. E não é difícil, em qualquer rua de São Paulo, passar por casas com placas de "vende-se" na porta.
Mesmo assim, as construtoras procuram passar uma idéia de euforia à clientela. Há tempo que distribuem, a cada sinal vermelho, prospectos de edifícios com impressão colorida, papel brilhante, produção artística.
A coisa vai se sofisticando cada vez mais. Um edifício Manhattan arranjou moças vestidas como a estátua da Liberdade; uma construtora rival organizou meninas com um fraque listado de tio Sam; domingo passado, o edifício Michelangelo era propagandeado por meninas com um enorme boné vermelho de pintor; vi também garotas de verde, a propósito de não sei que outra incorporação rival.
É sempre o mesmo: adolescentes do sexo feminino abordam o motorista, com folhetos coloridos de prédios novos. Demorei para aprender que podia recusar esses folhetos, como se recusa uma esmola ou uma caixa de pinhas vendidas no sinal.
Costumo ficar com o banco direito do carro atulhado dessas novidades imobiliárias; no fundo, não desgosto delas.
Um flat com "butler service"; a Maison das Rosas; não sei quantos metros quadrados de área verde; uma piscina no Condomínio dos Nobres; o solarium da Acapulco Tower; tábuas largas no living com lareira; aparelhos de ginástica no Fitness Center do Talleyrand Trumpateer!
Como o Manuel Bandeira de "Vou-me embora pra Pasárgada", fico imbuído de certezas e contentamentos: "farei ginástica, tomarei banhos de mar". Lá há alcalóides à vontade e prostituta bonita para a gente namorar...
Há as plantas do apartamento, e projeções artísticas, em perspectiva vertiginosa, da sala de TV. O apelo é tão formidável, que sinto vontade de mudar de casa imediatamente -mesmo que seja para um apartamento menor do que a casa em que vivo; aquele duplex de um dormitório parece mais acolhedor, mais prático, mais funcional.
No fundo, o que todos esses anúncios de prédio estão a prometer não é outra casa, outra residência: prometem-nos outra vida. Não a que temos, a outra, a que teríamos se habitássemos outra casa.
Outra casa? Não, outro corpo. A casa em que vivemos é contingente, é acidental, se comparada à casa íntima, à moradia que nos acompanha durante a vida inteira, a residência da qual não nos livramos, nem nos mudamos, que é o corpo da gente.
Por isso as propagandas imobiliárias são tão fortes e persuasivas: indicam-nos a possibilidade de ter outra vida, de começar tudo de novo, de ser quase outra pessoa. Meu quarto será um dormitório: isto é, minha vida será agitada e plena, as poucas horas de sono ou de insônia reservadas para mim serão apenas um detalhe funcional, uma circunstância fisiológica semelhante àquela de que se ocupam os banheiros.
No "living", piso descalço sobre as tábuas largas; dirijo-me ao bar, onde não faltarão coqueteleiras para o martini com que receberei Demi Moore.
Senhores, que vidaço. As construtoras deviam dar um "summer-jacket" de brinde a quem comprasse um apartamento.
O mundo Bogart, o mundo Belle Époque, o mundo Aeróbica combinam-se nesses prédios.
E todos os prédios vêm com um mapinha para quem quiser localizá-los, em algum ponto entre a avenida Giovanni Gronchi e a Castelo Branco. Apenas a 45 minutos da Faria Lima, a 20 minutos da avenida do Estado.
É longe -mas queremos ir longe. Queremos, sobretudo, estar longe de nós mesmos.
O que eles mostram, a mulher belíssima, o atleta do barbeador, o artista emancipado dos cigarros Free, é outra coisa: a possibilidade (falsa) de transmigrar de vida, de transmigrar de corpo.
Eu não compro a pilha, o aparelho de barba, ou o que quer que seja, acreditando numa transformação mágica -serei Pelé, serei atleta, serei vinte anos mais moço. Presto apenas minha homenagem à possibilidade, que me foi assegurada, de ser tudo isso.
Não sei o que as tecnologias podem fazer a esse respeito, mas sei que nada seria mais fascinante do que ter a experiência de ser outra pessoa.
Memórias falsas, resumidas em chips; transplantes de cérebro -a rigor, transplante de corpo-; manipulações químicas do remorso, da lembrança; tudo isso, a ficção científica explora com sua habitual felicidade em passar por cima de paradoxos lógicos.
A propaganda em geral funciona como um instrumento tosco dessa mesma aspiração. Outro corpo! Outra personalidade! Outra vida! Outro lugar! Outro apartamento!
A máquina de frustrações que é a vida cotidiana, a ordem de desencontros e derrotas que se implantou no capitalismo moderno (felicidade individual com sacrifício ao sistema), alimenta via propaganda mais frustrações e novas felicidades.
A propaganda põe o capitalismo para funcionar, alimentando as frustrações pessoais que ele próprio produz, prometendo felicidades que não se cumprem, só mais adiante. Com uma cenoura maquiada, o burro nem precisa de chicote.
Acabei de comprar uma nova casa. Foram meses de procura prazeirosa. Projetei a minha vida em cada oferta de corretor. Encontrei a que me cabia. Encolho-me na comodidade de um coelho em sua toca. Há algo de construtivo, de otimista, nessa atitude. Há o prazer de burguês de estar num pequeno castelo feudal.
Mas as utopias imobiliárias jogam com outro problema, com outra promessa -a de ser outra pessoa, a de habitar um outro corpo, a de viver outra vida.
Todo sonho realizado é frustrante, dizia Bergson, porque anula os outros sonhos que tivemos. Nisso aposta a propaganda, para a qual todo sonho vale tão pouco que precisa ser renovado todo dia. Faz de cada um o esquilo que corre atrás do pedaço de avelã, preso a uma armação de arame que o faz girar eternamente a roda onde pisa, com esperança e alegria.

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