São Paulo, quinta-feira, 5 de outubro de 1995
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Lesbian chic

OTAVIO FRIAS FILHO

Todas as nossas previsões, ao que tudo indica, estavam erradas. Uma doença mortífera transmitida por contágio sexual deveria acarretar um maior obscurantismo nos costumes, mas nunca o sexo foi assunto tão livre e legítimo: é preciso prevenir, falar às claras, higienizar, porque a nossa época é pragmática em vez de ideológica.
Estamos no apogeu da cultura sexual; um ator do filme ``Kids" sabe mais sobre sexo do que Aristóteles jamais soube. Mesmo a hostilidade contra homossexuais, que no começo da epidemia recrudesceu, parece dissolvida na aceitação clínica do fato de que a Aids, conforme saía do gueto para atingir qualquer ser humano, humanizava os homossexuais.
A universalidade da doença permitiu que eles aparecessem, pela primeira vez, como cidadãos. Outros fatores, enquanto isso, contribuíam para o mesmo resultado. Subordinando qualquer atividade à sua gratificação individual e imediata, a nossa época abriu uma separação nunca vista não só entre prole e sexo, como entre sexo e amor.
Antes enfeixados numa coisa só, amor, sexo e prole estão agora estraçalhados pela especialização moderna. Não é de espantar que a homossexualidade, estéril por definição, prospere à custa desse estraçalhamento como uma forma autônoma, reflexiva e estetizante de sexo, que está para o heterossexualismo como a realidade virtual está para a material.
Além disso, sendo a homossexualidade um capítulo da enciclopédia do narcisismo (a paixão pelo semelhante, por si mesmo), é natural que essa preferência tenha a mais ampla difusão hoje, quando sabemos que Deus não existe, que os ideais coletivos não passam de balela, que cada um vive e morre solitário diante de sua imagem no espelho.
Freud mostrou que existe um componente homossexual recalcado em toda pessoa; removido das sombras, esse componente agora começa a ingressar no ``mercado", tanto afetivo quanto econômico. Não será surpresa se, dentro de duas ou três gerações, uma grande parte das pessoas, talvez a maioria, for constituída de bissexuais.
Exatamente como ocorre por força das leis do mercado, quando livre, as relações se multiplicam e as diferenças se nivelam: os homens ficam mais ``sensíveis", as mulheres mais ``afirmativas", os gays mais masculinos e as lésbicas mais femininas, todos convergindo para um termo médio em que qualquer das opções está, à sua maneira, representada.
Gostaríamos que os casamentos voltassem a ser ``felizes", como antigamente, mas para isso seria necessário que o sexo fosse outra vez subordinado ao amor, e o amor à prole, o que é obviamente impossível nas condições atuais. Daí os surtos insistentes de romantismo amoroso, manifestações de luto por um passado que se perdeu.
A recente visibilidade do homossexualismo feminino, sua presença maciça na moda, no cinema, na música, quase a ponto de superar o equivalente masculino, é também sintoma dessa nostalgia. Não só nostalgia, pela ausência de penetração, do sexo ``seguro", mas inexplícito, eufemístico, de uma época em que ele se condensava, por assim dizer, no seu próprio perfume.

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