São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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meia pizza, meia tapioca

MARILENE FELINTO

A comparação entre o Sudeste e o Nordeste urbanos do Brasil de hoje pode reduzir-se a pequenas diferenças. Em termos gerais, as qualidades variam em maior escala do que os defeitos: o Sudeste é mais civilizado, o Nordeste é mais bonito. Mas praticamente tudo que existe hoje no Sudeste existe também no Nordeste, o que não acontecia há 20 anos.
À parte as diferenças de sotaque -o Nordeste preserva o português, mais correto em sintaxe, mais lusitano em vocabulário- ou alimentação (o Sudeste come "meia" muzzarela, "meia" calabresa), facilmente identificáveis, as outras são distinções sutis, de difícil localização.
As duas regiões têm os mesmos defeitos, os mesmos vícios de comportamento social do subdesenvolvimento, com pequenas diferenças. O Sudeste se adapta mais ágil e naturalmente à era da informática do que o Nordeste. Um se automatiza e se artificializa com rapidez suficiente para enterrar o passado em questão de dias. O outro assimila com atraso e mais devagar a novidade, resistindo, quase que naturalmente, à destruição do passado.
No Nordeste ainda convivem em paz o hipermercado e o verdureiro, ou o vendedor de doces, que percorre de tarde as ruas arborizadas de João Pessoa ou Natal anunciando aos gritos sua mercadoria: "Olha a macaxeira!, "Olha o quebra-queixo!". O verdureiro do Nordeste é poético, é natural da geografia daquelas ruas de terra, cheias de mangueiras, coqueiros e jaqueiras.
O verdureiro talvez nunca desapareça, ou ainda demore a ser engolido pelo automatismo da máquina registradora do hipermercado. Já o ambulante paulista é motorizado, artificial e incômodo, surge de carro e megafone às 8 da manhã, anunciando pamonhas suspeitas, desinteressantes água cândida ou sardinhas.
O progresso tecnológico parece se ajustar como uma luva ao Sudeste onde tudo acontece rápido e se adapta rápido -enquanto o Nordeste parece primeiro precisar contemplar a novidade, absorto e espantado, para depois se adaptar. Uma vez assimilado, o novo se instala no Nordeste em combinação que soa, à primeira vista, como a mistura impossível entre óleo e água.
Assim é o encontro entre o celular e o caranguejo. O executivo nordestino que exibe seu telefone celular no restaurante será visto, no momento seguinte, a devorar sem constrangimento um suculento caranguejo, com carcaça, pata e tudo a que se tem direito. É a surpreendente convivência entre a tecnologia de ponta e o selvagem universo dos crustáceos -e por que não?
O Nordeste, independentemente de seu progresso urbano, é ainda o lugar onde a vida se dá em plena natureza. O homem que, na periferia de São Paulo, se masturba contra as mulheres no aperto do trem das 6 não é diferente do que se masturba ao ar livre, olhando as mulheres nas praias de Maceió, Fortaleza ou Recife. O tarado nordestino apenas dispensa esconderijos, faz tudo na natureza, feito macaco.
Do mesmo modo, o boy nordestino que estaciona seu carro importado na praia de Boa Viagem, o volume do som no máximo, só não é igual ao filhinho de papai que faz a mesma coisa nas ruas dos jardins paulistanos porque mar combina menos com metal do que concreto e asfalto. A tapioca não é, portanto, diferente da pizza. São apenas dois modos de comer farinha.

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