São Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 1995
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Monumento a Senna abre debate sobre arte

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A escultura em homenagem a Ayrton Senna, inaugurada junto com o mais recente túnel construído pelo prefeito Maluf, tem suscitado muitas críticas.
Donos de galerias de arte reclamaram da obra. O monumento foi projetado por uma artista plástica não muito conhecida no circuito, Melinda Garcia. Deveriam ter feito uma concorrência pública para escolher o escultor.
Nada contra concorrências públicas, ou concursos com júri de especialistas. Mas o artista plástico Luiz Paulo Baravelli, em artigo publicado anteontem na Folha, foi direto ao ponto: "Se a escolha tivesse sido feita por um júri de especialistas, o sistema de arte estaria satisfeito, mas a escolha seria tão autoritária como a de Maluf.
Com efeito, o discurso antielitista, antiautoritário não funciona quando se trata de arte. O maestro Herbert von Karajan, ex-nazista, dava risada quando criticavam o seu "elitismo na escolha de instrumentistas para a Orquestra Filarmônica de Berlim. "Elitista? Não, eu não sou elitista. Eu sou superelitista! Claro que queria os melhores.
Ninguém mais autoritário do que especialistas em artes plásticas. Maluf, pelo menos, foi eleito. Apadrinhamento? Poderia ter acontecido também se críticos de arte, e não o prefeito, tivessem escolhido a obra.
Sei, por experiência própria, que críticos têm amigos e cupinchas. Escrevem geralmente a favor dos amigos e dos cupinchas. O que não é um escândalo total. Crítico e criticado compartilham das mesmas opiniões, já conversaram muito, e desde que o texto fundamente suas opiniões, ou melhor, desde que o texto seja convincente, persuasivo, haverá de convencer e persuadir o leitor que quiser ser convencido.
Como Paulo Maluf não é crítico de arte, talvez ele possa representar melhor do que os críticos de arte uma expectativa, um gosto popular -classe média alta- com relação ao que deveria ser um monumento para Ayrton Senna.
Os usuários do túnel, que são afinal o público para o qual se dirigem as obras e feitos de Maluf, aparentemente aprovam a escultura. Obra de arte e obra viária se conjugam à maravilha.
O artigo de Luiz Paulo Baravelli é muito inteligente, e dá muito o que pensar. Pena que há pouco espaço. Registro algumas coisas, de improviso.
Baravelli diz que a escultura de Melinda Garcia não é uma obra de arte. "Arte é produção de consciência; esta escultura não é arte porque não produz no espectador uma consciência que ele já não tivesse. A peça é apenas um lembrete.
Várias coisas a comentar. Primeira: será que o monumento a Ayrton Senna pretendia ser uma obra de arte? Ou é para ser apenas monumento?
Entre obra de arte e monumento, há uma diferença. O monumento reitera a informação, a obra de arte desfaz o clichê. Baravelli diz que a peça "é apenas um lembrete. Mas lembrete, fora o sentido pejorativo do termo, é também lembrança, memória. E qualquer estátua pública, qualquer monumento, quer exatamente fazer isso: lembrar.
Nesse sentido, um monumento público está obrigado a fazer coisas que uma obra de arte não precisa, nem deve, respeitar: tem de trazer consigo um ato de referência, tem de apontar para "outra coisa, tem de reforçar a memória do espectador.
Melinda Garcia percebeu que, visualmente, o mais memorável em Ayrton Senna era o fato de ele empunhar a bandeira do Brasil nas competições internacionais. Sua escultura rememora, reitera, solidifica e dá fixação a um símbolo nacional, os triunfos bandeirantes de Senna.
Não acho uma escultura bonita. Há algo de tosco na mãozinha segurando a bandeira, e de bobamente ficcional na cápsula de era atômica que representa o carro.
Mas Baravelli exige de Melinda Garcia outra coisa: para que seja "obra de arte, a escultura teria de ser "uma produção de consciência, já que, para Baravelli, "arte é produção de consciência.
Essa definição de arte é tão boa quanto qualquer outra. Tem chances de ser verdadeira. O que é arte? Na definição da Heidegger, é o colocar em obra a Verdade do Ente. Embora abstrata, essa definição é plenamente satisfatória... uma vez que se tenha uma idéia do que é "obra, "verdade, ente no sistema heideggeriano.
Mesmo o arquiinimigo de Heidegger, Theodor Adorno, parece refletir algo dessa concepção em sua "Teoria Estética. Que importância tem isso?
E o que é uma "definição qualquer? Posso definir-me de várias maneiras: como o terceiro filho de Fulano e Fulana de Tal; como o proprietário de um apartamento no endereço x; como aquele articulista que às quartas e sextas escreve na última página de "Ilustrada. Todos esses endereços verbais convergiriam ao mesmo referente, à mesma realidade, eu mesmo.
Acho que definir o que é "arte é menos complicado do que se pensa, uma vez estabelecidos os parâmetros, o sistema ideológico e/ou metafísico em que navega o definidor. Não é que haja mil e uma definições de arte, todas contraditórias entre si, e portanto falsas todas elas. São todas verdadeiras, só que pronunciadas em linguagens diferentes -a linguagem de Heidegger, a de Croce, a de Aristóteles.
Tomemos então a idéia baravelliana de que arte é produção de consciência, e seu corolário -a escultura em homenagem a Ayrton Senna não é arte, pois não produz consciência, é apenas um lembrete.
Duvido um pouco disso, não pelos méritos de escultura. Mas pelo fato de que aquela estátua "produz, talvez involuntariamente para "consciência.
Vejamos. Ayrton Senna foi o rei da velocidade. Ei-lo transformado em estátua, coisa parada. Já é uma contradição. A coisa parada, a estátua de Melinda Garcia, representa um movimento -a bandeira trêmula, imóvel. É outra contradição. De perto, reclamam os cidadãos, aquela obra não se parece com nada. De longe, entretanto, ganha seu sentido visual e realista. Nesta última contradição -o perto contra o longe- não estaria simbolizada a própria vida do mito Ayrton Senna? Mito se visto de longe?
"Lembrete, diz com acerto Baravelli a respeito da escultura. Quem passa pelas pistas da 23 de Maio tem apenas uma rápida visão da obra... Não a contempla. Mas não é condizente com a memória de um piloto de Fórmula 1 o fato de que seja visto "de passagem, "rapidamente, como "lembrete?
Mesmo que a obra seja um desastre estético, não será estético, pensando em Imola, que ela seja um desastre?
A arte contemporânea passa o tempo todo pensando o tema da morte da arte, lucubra sem cessar sobre o que é arte ou não. Melinda Garcia põe em pauta, talvez inconscientemente, a mesma pergunta das vanguardas mais radicais pós-Duchamp: "é isto arte? Não parabenizo seu talento, que julgo médio, mas sua virtude, seu senso de oportunidade, sua sorte, sua prontidão de resposta -coisas com que o talento artístico, por obra das próprias vanguardas, se confunde hoje em dia.

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