São Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 1995
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Arquipélago em chamas

WELLINGTON LIBERATTI

A ilha dos Alcatrazes e seu arquipélago distam cerca de 34 quilômetros do litoral norte do Estado de São Paulo, na altura do município de São Sebastião.
Seu primeiro registro parece ter sido o do diário de navegação de Pero Lopes de Souza, onde é relatado que ele e Martim Afonso de Souza visitaram a ilha dos Alcatrazes em 1531, ocasião em que o próprio Pero Lopes ateou fogo à ilha. Seu gesto parece ter marcado o destino do lugar, que, mesmo sem exibir incêndios, parece viver em chamas.
Acontece que, por serem ilhas oceânicas, constituem-se em bens da União, de acordo com o artigo 20 da Constituição, tendo o arquipélago sido entregue em 1982 ao Ministério da Marinha para o fim específico da instalação de alvos para a realização de exercícios de tiro.
A Marinha, que até então utilizava a raia de tiro da Marinha americana no Caribe, passou a usar a sua própria, a custos consideravelmente mais baixos. Bem entendido, custos financeiros, porque, por outro lado, tem pago injustamente um elevado preço moral.
É que grupos ambientalistas vêm desenvolvendo intensa campanha na mídia, buscando inculcar no imaginário popular a idéia de que, com seus tiros, a Marinha vem promovendo a devastação da ilha, incendiando a vegetação e destruindo as espécies que ali vivem.
A propaganda evoca imagens de arrasadores bombardeios navais vistos em filmes de guerra, induzindo a opinião pública a associar tais cenas ao que deve ocorrer em Alcatrazes.
Na realidade, a Marinha atira -exclusivamente- sobre alvos pintados em um paredão rochoso esparsamente coberto com vegetação rasteira em uma das extremidades da ilha, não ocupando nem sequer 5% de sua área. Acresce que esses tiros destinam-se a verificar a precisão de seu ponto de queda e, para tanto, empregam munição inerte, isto é, sua ogiva (parte que chega até o alvo) é lastrada com areia. Ao cair, não explodem nem incendeiam, quando muito produzem poeira. E o único ruído é o do disparo do canhão que chega à ilha como um trovão longínquo, já que o navio atira de alguns quilômetros de distância.
Tais ogivas são empregadas há quase 30 anos em função de seu baixo custo e por atenderem perfeitamente ao propósito do exercício, que é o de poder aferir a integridade do sistema de armas como um todo, aí incluído o adestramento das guarnições. A análise do resultado permite concluir se o sistema está com todos os seus componentes -radares, canhões, computadores de direção de tiro, sistema de navegação etc.- funcionando corretamente e alinhados entre si. Sem o experimento prático, não há como aferir o sistema.
De outra parte, os ambientalistas lutam para que a Marinha seja impedida de ali atirar, alegando haver impacto sobre o ecossistema e que Alcatrazes é um santuário ecológico a ser preservado.
Paradoxalmente, propugnam pelo ``turismo ecológico", cuja capacidade de devastação pode ser apreciada no arquipélago dos Abrolhos, verdadeiro paraíso quando sob a responsabilidade da Marinha, hoje degradado pelo eco-entulho de plásticos, garrafas e latas, conforme reportagens que mostram o rastro deixado pelo tipo de turismo que desejam para Alcatrazes.
Talvez por isso, alguns, reconhecendo a insuficiência implícita de seus argumentos, desviam-se da questão objetiva -se os tiros causam ou não dano- e dedicam-se a tergiversações do tipo ``para que canhões se agora só usam mísseis?" ou ``para que navios de guerra se não possuímos inimigos?".
A Marinha está pronta para essa discussão, desde que em foro adequado e com interlocutores responsáveis. No momento, parece adequado manter a objetividade, evitando, por exemplo, debates estéreis em torno da conveniência de se construir uma ilha artificial para a realização dos exercícios, conforme recentemente sugerido por um esclarecido ambientalista. Engraçado seria se alguma espécie se encantasse com o eventual produto de tal delírio!
Em parte, contribui para a irracionalidade da argumentação um denominador comum: falam do que não conhecem, pois jamais observaram um tiro sobre Alcatrazes. Suas análises são meras suposições, e, para quem pensa que não é necessário observar um tiro para saber o seu resultado, convém lembrar que alguns deputados da Comissão de Defesa do Meio Ambiente, quando levados até a ilha para assistir aos tiros, ``foram unânimes em avaliar que os exercícios da Marinha não comprometem a beleza e o ecossistema de Alcatrazes" (revista ``Isto É", 13/9, pág. 115).
É bem verdade que rapidamente aduziram que a palavra final dependeria de laudos técnicos, mantendo-se, assim, politicamente corretos.
Comparada com a sua descrição em 1920, a ilha encontra-se virtualmente intocada, havendo alterações significativas apenas na vegetação do local onde a Marinha colocou seus alvos. Diligentemente os ambientalistas imputaram aos tiros essa transformação, ignorando que em 1980 o local fora escolhido por só haver ali escassa vegetação rasteira que não interferiria com a visão dos alvos.
Finalmente, todas as afirmações apocalípticas dos ambientalistas quanto ao impacto dos tiros sobre o ecossistema foram contestadas por peritos judiciais no próprio processo que moveram contra a Marinha, que, pelo menos até o momento, vem obtendo ganhos de causa em todas as instâncias, sendo dignas de reflexão as seguintes considerações do juiz que proferiu a sentença no processo em que a Marinha figura como ré:
``Afastadas as pretensões de uso imobiliário e turístico do arquipélago dos Alcatrazes pelos autores, e delas destacadas apenas as pretensões científicas, é de se destacar que os senhores peritos foram unânimes em reconhecer a possibilidade, saudável, da coexistência da Marinha brasileira e de cientistas no arquipélago dos Alcatrazes, garantindo assim ampla proteção ao meio ambiente lá existente, com seus endemismos e demais particularidades. A presença da Marinha brasileira no arquipélago dos Alcatrazes é uma garantia de proteção ao meio ambiente local."

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