São Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 1995
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Bombardeios e cidadania

FAUSTO PIRES DE CAMPOS

``A civilização de um povo avalia-se pelo modo com que trata os animais."
Humboldt

O ameaçado arquipélago dos Alcatrazes constitui o maior ninhal de aves marinhas do Sudeste brasileiro e um notável laboratório natural para estudos evolutivos, abrigando espécies únicas (endêmicas) em seus ecossistemas.
A denominação Alcatrazes é derivada do nome primitivo do atobá (Sula leucogaster), atrevido e simpático mergulhão marinho cujas colônias se reproduzem na orla rochosa de todas as cinco ilhas e em três ilhotas. A fragata é a outra ave marinha abundante, a tal ponto que a população local corresponde ao dobro da existente em todo o Caribe.
A exuberância dos meios terrestre e submarino no arquipélago, bem como sua paisagem notável, contrastando com as ameaças que sofrem, levaram o deputado federal Fábio Feldmann a propor para proteção dessa vida selvagem, por meio do projeto de lei nº 5.673/90, a criação do Parque Nacional Marinho dos Alcatrazes.
Mamíferos marinhos (baleias de Bryde e golfinhos pintados) encontram refúgio e se alimentam no arquipélago. A maioria das 150 espécies de peixes identificadas é associada ao fundo rochoso. Estão presentes as cinco espécies de tartarugas marinhas existentes no Brasil.
São conhecidas em Alcatrazes centenas de espécies de plantas e de animais. Nesse meio, pererecas, cobras, lagartos, aranhas, centopéias, insetos, uma bela variedade de orquídea e a flor rainha-do-abismo, evoluindo isolados do continente nos últimos 10 mil anos, tornaram-se espécies únicas no mundo.
Alcatrazes serve de local para pouso e forrageamento de aves migratórias, como os maçaricos e batuíras e para a sobrevivência de aves protegidas por acordos internacionais, destacando-se o falcão-peregrino. O arquipélago consiste ainda de um único porto -proporcionando abrigo longe da costa, entre Ilhabela e Bertioga, para pescadores profissionais e a comunidade náutica.
O conjunto de razões ambientais justifica a preservação efetiva do arquipélago, mas a criação do parque marinho enfrenta a pressão da Marinha, interessada em manter a raia de tiro construída há 15 anos. Ignora-se que os atobás e gaivotões nidificam igualmente na face nordeste do Saco do Funil (onde estão pintados os alvos), como comprovado na ação pública em curso, transformando-os em vítimas a cada bombardeio.
O perito judicial, biólogo, durante um exercício, observou que ``o som proveniente dos disparos provoca o esvoaçamento das aves da ilha, principalmente de fragatas".
Mas a Marinha leva observadores sem prática que, distantes mais de um quilômetro, ficam na mesma situação relatada no livro ``Paratii", em que o piloto de um helicóptero argentino é incapaz de perceber o desespero de Amyr Klink no solo, assistindo centenas de pinguins assustados abandonarem seus ninhos, expondo os ovos a predadores.
Além da tese inverossímil, aventada pela Marinha, de que os bombardeios não causam dano, podendo conviver com a conservação ambiental, o que nos indigna é assistirmos uma força militar infringir impunemente a lei. A responsabilidade intrínseca dessa subordinação é uma questão de cidadania.
A Estação Ecológica Tupinambás, estabelecida em quatro conjuntos insulares de Alcatrazes, possui uma de suas áreas situada no meio do ``Setor de Abertura de Fogo", onde as lajes Dupla e Singela são denominadas alvos 8 e 9, ou seja, desde 1986, quando foi criada, a estação é bombardeada. Toda a região, protegida legalmente, não poderia ter sua biota afetada.
As construções militares no Pico Boa Vista e a instalação de alvos na encosta, com os bombardeios provocando incêndios, acarretaram a supressão da vegetação, agredindo frontalmente o Código Florestal, datado de 1965.
Por constituir sítio de valor paisagístico notável e de ter sua gênese comum à da Serra do Mar, acrescido ao fato de ser de uso imemorial do Estado de São Paulo, as ilhas foram objeto de tombamento pela resolução 40/85 do Condephaat, que está sendo descumprida, assim como é ignorado que a Constituição considera a zona costeira e a Mata Atlântica como patrimônio nacional.
O arquipélago está situado em plena plataforma continental, antes do talude, sendo portanto costeiro e sob jurisdição do município de São Sebastião -que o protegeu por lei específica, configurando uma Área de Proteção Ambiental (APA Alcatrazes).
A resolução Conama 001/86 e a Constituição Federal determinam como indispensável a elaboração de Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) em atividades potencialmente degradadoras, o que não foi obedecido pela Marinha do Brasil, que tem pairado acima dessas e outras disposições legais.
Razões militares não podem comprometer a importante e sublime diversidade da vida. A França, com os atuais testes nucleares no atol de Mururoa, demonstra lamentavelmente que não é um país sério. Nem fraterno. A Marinha do Brasil tem a responsabilidade de, sintonizada com objetivos de paz, buscar alternativas para seus treinamentos atendendo a Convenção da Biodiversidade referendada pelo Congresso Nacional.

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