São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 1995
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Pior que a morte, só o desejo

MOACYR SCLIAR

"Senhor administrador do cemitério: foi com surpresa, preocupação e até angústia que lemos o edital anunciando que o nosso querido tio, ou o que resta dele, será removido de sua sepultura. Nós sempre pensamos que um jazigo significava repouso eterno; pelo menos, foi essa a expressão usada no enterro, na frente de várias testemunhas. Agora, porém, descobrimos que a eternidade tem preço. Que -apressamo-nos a dizer- não contestamos; sabemos que o espaço urbano, ocupado pelos vivos, pelos mais vivos, ou pelos mortos, custa dinheiro. O que pretendemos, na verdade, é uma atenção especial. Não para nós, os familiares, mas sim para o nosso querido tio.
Verdade: ele não era exatamente um cidadão morigerado; nunca teve trabalho fixo nem constituiu família -nada. Nós o sustentávamos. E o fazíamos com prazer, porque o nosso tio, senhor administrador, era um homem alegre, um homem que encantava todos aqueles que com ele conviviam. Ademais, nunca fez grandes exigências; vestia-se modestamente, alimentava-se frugalmente, bebia moderadamente.
Mas de uma coisa fazia questão: queria morar bem. E isso para nós era um problema, porque casa ele não tinha, só podia morar em imóveis alugados -e aluguel numa grande cidade brasileira, o senhor sabe, não é barato. Não seríamos nós, contudo, que o contrariaríamos. Se ele queria residir numa imponente mansão, propriedade de um famoso comendador, nós íamos lá e alugávamos a mansão. Se manifestava desejo de viver num apartamento de cobertura, alugávamos o apartamento de cobertura. Se preferia uma casa à beira-mar, alugávamos a casa à beira-mar.
O senhor já está a ver, senhor administrador, que nosso querido tio trocou de endereço muitas vezes. Mas -é bom que se diga- não por culpa sua. Nós é que não pagávamos o aluguel, senhor administrador. Ficava um sobrinho empurrando o encargo para o outro e, de repente, zás, nosso tio era despejado, às vezes de maneira humilhante.
Nunca se queixou. A bem da verdade, seja dito que nunca se queixou. E não apenas por lhe faltar autoridade para tanto; não se queixava porque não era de se queixar, porque achava tolice desperdiçar a vida com queixumes. Quando ficava sem casa, passava um tempo morando com algum dos sobrinhos, até que alugássemos outro imóvel.
Um dia -ele já estava velhinho-, adoeceu. Logo se viu que era coisa grave e que daquela não escaparia. De novo, porém, manteve a altivez e o bom humor de sempre. Vivi bem, dizia, e vou partir sem tristeza.
Só nos fez um pedido, um único pedido. Quero, disse, um jazigo perpétuo, um lugar onde os meus ossos descansem para sempre e de onde eu não tenha de me mudar. E nós prometemos: sim, titio, o senhor terá um jazigo perpétuo.
Agora, senhor administrador, ficamos sabendo que o nosso tio terá de mudar de novo, e mais uma vez por falta de pagamento. O objetivo desta é pedir que a ordem de despejo seja sustada. Meu tio não aguentaria isso; sua alma passaria a vaguear pela casa dos sobrinhos, numa muda acusação.
Deixe o nosso tio lá, senhor administrador. Como ele próprio dizia: pior que a morte, só o despejo. E pior que o despejo propriamente dito, só o despejo post-mortem."

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