São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 1995
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Imoralidades

OTAVIO FRIAS FILHO

É difícil ouvir falar em moral e ética sem reprimir uma espécie de sorriso interior. Não que o mundo não precise de mais moral e ética, provavelmente precisa. Mas toda vez que vemos alguém esbravejar em nome desta ou daquela moralidade, recriminando os outros, uma voz no fundo da consciência nos avisa: ``Farsante!".
Tropeçamos diariamente com tamanhas atrocidades que, tivéssemos alguma propensão para a ética, teríamos de mudar imediatamente de vida: largar família, trabalho e conforto para abraçar uma causa, ou então dar um tiro na cabeça. Mas estamos de tal forma defendidos, pelo hábito, de quase todo horror em volta, que nada fazemos.
Tudo o que fazemos, aliás, é motivado pelo cálculo do nosso interesse, mesmo quando não o sabemos, até mesmo ao decidirmos não violar preceitos morais. O manancial inesgotável da imoralidade não está no crime nem no sexo, mas nas omissões que esvaziam nossa vida, na hipocrisia pela qual merecemos o epíteto do Evangelho, ``raça de víboras".
Nem mesmo o costume de associar ética e simplicidade de espírito é confiável. Embora exista uma moralidade comunitária, ingênua, ela não resiste à crítica, revelando-se quase sempre inercial, preconceituosa e tola. Todo problema moral é insolúvel exceto no âmbito subjetivo e por ato de uma decisão: isto é errado porque é.
Daí um dos paradoxos nesse assunto cheio deles, a saber, que a moral depende tanto do comportamento objetivo quanto do grau de exigência subjetiva, de modo que um relapso, por exemplo, é menos culpado que um perfeccionista. O mais moral dos homens ao mesmo tempo teria de se julgar -o que em termos morais equivale a ser- o mais imoral de todos.
Mario Amato, portanto, estava certo, apesar dos desmentidos e rodeios em que se perdeu a seguir, quando declarou que todos somos imorais, ou algo do gênero. Embora escandalizasse, ele não inovava; simplesmente repetia o que cada profeta, cada filósofo, cada santo sempre disse. Só que nós não fomos feitos para essa moral de super-homens.
Ao lado do primeiro profeta estava o primeiro homem prático, o primeiro político, advogado das vantagens de uma moral transigente, uma leve pressão contínua, fluida, em vez daqueles extremos de ascese e culpa. Weber chamou essa moral utilitária de ética da responsabilidade, oposta à ética da convicção, que seria a dos santos e profetas.
A diferença entre as duas está na posição dos meios e dos fins, que na ética da convicção se mostram indistinguíveis, como uma coisa só, enquanto que na ética da responsabilidade não só aparecem separados e em estado de tensão, como devem, meios e fins, manter relações proporcionais entre si.
De tempos em tempos, um movimento qualquer de fanáticos tenta impor a ética da convicção à política e à sociedade, mas o entusiasmo dura pouco: tão logo triunfam, eles se vêem obrigados, sob pena de cair, a praticar a mais reles ética da responsabilidade, que fatalmente degenera em algo de muito pouco ético e bastante irresponsável.
Desde que arranquem as pessoas do sonambulismo em que vivem, os fanáticos podem estar certos de contar com o maior apoio. Estamos sempre dispostos a exigir ética da convicção na casa do vizinho, adoramos eleger profetas e derrubá-los porque eram doidos, enquanto continuamos a agir, na vida particular, como verdadeiros deputados.

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