São Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 1995
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'Brinquedo-gosma' mistura prazer e repulsa

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

U ma das atrações comerciais deste Dia das Crianças, como informou a Folha de domingo passado, é um brinquedo-gosma, que aparece em duas verões: o "Gak-Inflabol" e o "Gak do Barulho".
Acredito já ter feito alguns comentários sobre esse gênero de produto, com felicidade denominado pela reportagem de "brinquedo-gosma". É razoavelmente conhecida das gerações mais velhas a substância chamada comercialmente de "Geleca". Trata-se do ancestral do "Gak do Barulho".
Comecemos pela "Geleca". Como o nome indica, trata-se de uma geléia nojenta; é a massinha de modelar do Mal. Colorida, disforme e fria ao contato da pele, serve para ser atirada à parede. Gruda e escorre devagar. Inspira nojo, mas é limpa e inodora. Permite às crianças uma vaga brincadeira de ficção científica: o astronauta, num mundo estranho, vê aquela forma de vida venenosa grudada em seu capacete de plástico.
Com efeito, a "Geleca" era uma espécie de plástico vivo, rebelde a qualquer esforço de modelagem, com tremulações opacas de mercúrio. A superfície tensa se rompe facilmente, com filamentos de chiclete. É o chiclete incomível, em sua adiposidade gélida e nojenta. Manipulável e viscoso, matéria-prima do Nada, seio diminuto e flácido, é a escola da aversão prazeirosa que, de uma perspectiva psicanalítica, haveria de corresponder imaginariamente, na criança de seis ou sete anos, ao tabu do incesto: a "Geleca" são as celulites de mamãe.
Trata-se, a rigor, de um brinquedo educativo: pois mistura as sensações de prazer e de repulsa. O prazer que há em ter em mãos algo de esmagável, dócil ao contato. E a repulsa de perceber que, nessa forma vaga de vida, não há resposta ao contato físico, há só frieza estratosférica; e, na matéria líquida, pressente-se a contaminação de um grudento antinatural.
Rapidamente, portanto, a "Geleca" perdia seu poder colante, sujando-se a seco, com pó, migalhas, lascas, fragmentos. Talvez fosse, com isso, um símbolo do amadurecimento, da lenta degradação do que há de infantil em toda pessoa: a matéria móvel se endurece, recoberta de lembranças inúteis, absorvida das poeiras e das cinzas de cada experiência, de cada travessura, de todos os erros.
Mas a "Geleca" é hoje coisa do passado. Inventaram produto melhor. É esse "Gak do Barulho", consumido à larga no Dia das Crianças.
Explico melhor o produto. Um "Gak" é apenas uma "Geleca". Não vi diferença entre uma coisa e outra. Só que o "Gak do Barulho" é um brinquedo mais complexo. Você ganha uma quantidade de "Gak" -a matéria viscosa que já conhecemos- e, junto, uma maquininha.
A maquininha é assim. Tem uma bomba, um fole de ar, que se comunica com um tubo de plástico transparente. Você põe um punhado de "Gak" na base do tubo. Em seguida, pressiona a bomba de ar.
O efeito é sublime. O vento produzido procura vencer o tampão molengo da gelatina, atravessa o tubo de plástico, e em seus esforços estertora os mais ridículos ruídos.
Alegria das crianças, o "Gak do Barulho" é uma máquina de promover sons reprimidos. Do estampido seco e triunfal à meditação lenta de um silvo sutil e penetrante, todas as gamas e matizes de digestão humana encontram, nesse aparelho, sua representação sonora.
Borborigmas agônicos, revolvimentos indiscretos do duodeno, flatulências metralhadas ou bombas silenciosas do intestino grosso, o brinquedo "Gak do Barulho" desenvolve e arbitra muitos dos fenômenos involuntários do organismo.
É uma festa. As crianças aprendem pelo menos uma coisa: a ver os próprios prazeres digestivos em seu total ridículo, num estado de terceira pessoa, sub espécie alteratis. É a máquina, não eu, quem fez esse barulho.
Pois agora inventou-se um aparelho capaz de conferir esses mesmos prazeres sem que as calças se sujem. O "Gak do Barulho" sublima uma das pulsões mais desagradáveis da espécie humana.
Resta saber se, depois da fase oral e da fase anal, algum brinquedo inventará a sublimação, usando a terminologia freudiana, para a fase fálica. "Gerbis" e seu concorrente masculino talvez já sejam isso. Mas são apenas bonecos simbólicos, sem relação concreta com os acidentes e os ímpetos do corpo. Quando inventarem esse novo brinquedo, a infância desaparecerá. O que é uma vantagem.

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