São Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 1995
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"Maria Parda" embriaga o público

MÔNICA RODRIGUES COSTA
EDITORA DA FOLHINHA

``Batam em latas, batam em latas", diria o poeta Mário de Sá Carneiro, se visse passar a louca de rua Maria Parda.
O espetáculo ``Pranto de Maria Parda" envolve completamente o espectador com as palavras dessa bêbada.
Expondo sua decadência, a personagem retrata sua miséria pessoal e a época de fome e de peste em Portugal dos anos 1500.
A portuguesa Maria do Céu Guerra, da companhia ``A Barraca", é a diretora e atriz da peça, monólogo em três atos, com texto de um Gil Vicente (1465-1537) maduro e livre, criado em 1522, sem a finalidade de ser apresentado à corte.
No segundo ato, há acréscimo de texto do poeta modernista Mário de Sá Carneiro.
A montagem estreou anteontem em São Paulo e está hoje e amanhã no teatro Paiol de Curitiba. Está no Brasil como parte do 5º Festival Internacional de Artes Cênicas.

Garrafa de vinho
Maria do Céu Guerra passa o primeiro ato sentada, segurando a garrafa de vinho. Sua personagem vai aos poucos surgindo da penumbra.
A atriz então se levanta, anda, corre. Vai formulando, com pequenos gestos, uma Maria Parda bêbada, que embola a voz e fala coisas sem sentido.
Suas palavras insensatas, puros trocadilhos poéticos, são misturadas à extrema consciência do tempo que narra.
O dramaturgo alemão Bertolt Brecht definiu o ator chinês como uma folha de papel em branco, em cuja superfície configura as características do personagem.

Metalinguagem
Maria do Céu incorpora Maria Parda, mas avisa ao espectador que ele está no teatro. A atriz funde a interpretação da bêbada trêmula com a metalinguagem do gesto calculado.
Maria do Céu conta nos dedos da personagem quanto custou a mantilha que vendeu, quantas amigas se foram.
Segue-se então um cálculo embriagado, cômico.
Na boca da atriz, a palavra "prantear fica molhada de tristeza, mas não perde o humor. Arranca risos nervosos da platéia.
Maria Parda grita, clama. Procura amigos, que lhe negam ajuda em expressões proverbiais, típicas das farsas de Gil Vicente.
Maria Parda chora o vinho, embala a garrafa. ``Por que estais tantos dias, as tavernas da algazarra, suas pipas vazias e os tonéis secos?" -alusão à seca e à crise portuguesas.
Maria Parda pergunta por que ``Deus nos tirou o vinho", no estilo satírico do autor português, que faz a personagem atribuir a blasfêmia ao ano ``triste e mesquinho, que até nos tornou pagãos".
A atriz embriaga o público. Pede fé, pede que reze com ela e lamenta: ``Eu trago os braços cansados, eu pago de bolsos vazios".
A atriz Maria do Céu foi premiada pela Unesco como a melhor intérprete feminina no Festival de Artes Cênicas da Expo-92, em Sevilha.
A atriz chora, ri, chora. Domina as palavras. Brinca com a tragédia. Da fé, salta para Noé e passa a falar dos animais da Arca, apontando as feridas e os piolhos que carrega no corpo.
Prossegue repetindo palavras desconexas e comentários auto-irônicos até completar o testamento de Maria Parda, no terceiro ato.
``E tem mais: quero missas rezadas por vigários que não bebam menos do que eu".
A iluminação do espetáculo forma um cenário de luz. As portas em que Maria bate são retângulos iluminados. A atriz exibe ali sua cara triste. Acaba na penumbra, Maria Parda embalada pela barca-barril, pela ilha leve do vinho.

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