São Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O público e o privado

DALMO DE ABREU DALLARI

O governo federal vem anunciando a apresentação de um projeto que já recebeu o pomposo rótulo de ``reforma do Estado".
Pelo que já se conhece desse projeto, por meio de entrevistas e artigos de responsabilidade dos que se dedicam à sua preparação, não se trata efetivamente de uma reforma do Estado, pois nem mesmo foram referidos alguns pontos que seriam fundamentais numa redefinição do Estado brasileiro, como o federalismo, o equilíbrio dos Poderes, o Legislativo bicameral, a efetiva participação do povo na definição das políticas públicas e no controle do governo etc.
Por tudo o que já foi dito e publicado até agora, o que se conclui é que o principal objetivo da reforma em preparo é a redução dos gastos públicos. E, para isso, o que se imaginou foi, em primeiro lugar, diminuir substancialmente a responsabilidade do Estado pela realização de tarefas que são de grande importância social, mas que pesam muito na despesa pública.
A par disso e dentro do mesmo objetivo, pretende-se diminuir radicalmente o número de servidores públicos, por se considerar que hoje há excesso de servidores em todos os setores da administração e que haverá quantidade ainda maior de supérfluos, acarretando mais despesa inútil, com a redução dos encargos do Estado.
Quanto ao primeiro ponto -a diminuição da presença do Estado-, o que se tem anunciado como um grande achado é a preservação do caráter público de muitos serviços, retirando deles a condição de estatais. O instrumento jurídico e administrativo que tornaria possível essa conversão seriam as ``organizações sociais".
Mas ainda não estão claras, ou não se quis revelar, as principais características das chamadas ``organizações sociais". Ao que parece, elas deverão ter estreito parentesco com a empresa pública e a fundação pública do direito brasileiro.
Entretanto, em várias oportunidades, o ilustre ministro Bresser Pereira, mencionando as ``organizações sociais" como absoluta inovação, deixou entrever que a inspiração veio dos EUA, ao citar instituições americanas que prestam serviços públicos relevantes utilizando recursos privados e públicos, acreditando estar nessa parceria a chave para o ingresso no mundo do Estado-mínimo.
A esse propósito, é muito oportuno citar um fato de agora que deixa evidente a impropriedade e a falta de realismo da pretensão de transplante do exemplo norte-americano.
Conforme foi noticiado pelo jornal ``The New York Times" (8/9), um farmacêutico graduado em 1931 pela Universidade de Richmond, muito bem-sucedido na atividade de farmácia e drogaria, acaba de morrer deixando em testamento para sua antiga universidade, sua ``alma mater", a quantia de US$ 35 milhões, com a qual atingem o total de US$ 160 milhões as contribuições de sua família para aquela universidade nos últimos 25 anos.
Nunca se teve notícia de que um antigo aluno de universidade brasileira, enriquecido com o apoio de sua graduação, fizesse algo semelhante, devendo-se notar que nas universidades norte-americanas, públicas e privadas, é constante o apoio financeiro de antigos alunos mediante doações ou legados.
Voltando à realidade brasileira, a definição das ``organizações sociais" -às quais se pretende dar um papel de extrema relevância na sociedade brasileira- ainda é muito vaga, faltando esclarecer, por exemplo, os seguintes pontos: como serão criadas essas entidades, quem vai decidir sobre sua criação, quando, para quais serviços e com que atribuições?
Elas irão assumir tarefas da União, dos Estados e dos municípios? De onde virão os recursos financeiros para a instituição das ``organizações sociais" e a garantia de seu funcionamento eficiente? Qual será sua situação no sistema jurídico brasileiro em termos de relacionamento com entidades estatais e privadas, bem como quanto aos encargos tributários, sociais e trabalhistas? Como serão escolhidos seus dirigentes, e como se efetivará sua responsabilidade?
A experiência brasileira mostra que já houve muita ingenuidade na utilização de novos instrumentos que supostamente aliviariam o Estado, como vem ocorrendo com muitas fundações que ou não funcionam ou só conseguem funcionar bem quando recebem dinheiro público.
Um caminho seguro para o aperfeiçoamento do Estado será uma boa reforma administrativa, que deverá incluir: a simplificação de procedimentos, eliminando-se formalidades supérfluas; a publicidade honesta dos atos administrativos; a escolha criteriosa dos servidores e o oferecimento de oportunidades para que eles se aperfeiçoem.
Mais: a efetiva e rápida aplicação das normas legais e regulamentares já existentes para punição dos faltosos, a par da criação de estímulos para os mais dedicados; estabelecimento de critérios simples e claros para a remuneração dos servidores, com a eliminação gradativa do sistema de vantagens, adicionais e benefícios, adotando-se o sistema e os níveis da iniciativa privada.
Uma reforma desse porte não realizaria milagres nem se concretizaria de um dia para outro, mas seria um rumo realista para o aperfeiçoamento do Estado.

Texto Anterior: JUSTIFICATIVA; PREVISÃO; CONSCIÊNCIA
Próximo Texto: A privatização da Vale
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.